domingo, 8 de agosto de 2010

O que der certo: Cinismo e investimento libidinal em Whatever Works de W.Allen.





Uma desfaçatez de classe

(((um narrador voluntariamente importuno e sem credibilidade)))

No diálogo que inicia o filme o físico ranzinza de "Whatever Works" se dirige diretamente a nós, expectadores, apresentando-se como narrador e protagonista. A figura de Boris (com seu humor cínico e desencantado, repleto de tiradas espirituosas [wit]) parece saída de um romance em primeira pessoa. Assim, gostaríamos de abordar o filme desse ângulo, tomando o cuidado de não nos deixar enredar pelo narrador, que não está necessariamente preocupado em nos revelar toda a verdade.

Para aproximá-lo um pouco de nossa experiência poderíamos compará-lo a um primo distante no tempo e no espaço, e que também se ocupou em nos contar sua história (ainda que não desse a mínima para nossa opinião): seu nome é Brás Cubas.


Feição social do narrador e da intriga

(((And just maybe - I'm to blame for all I've heard - I'm not sure)))

"O romance (filme?) não busca fixar a contradição, e muito menos a transformação, mas o progressivo desgaste no entusiasmo com que um parasita abocanha a sua parte nas vantagens da iniqüidade social, cujo limite não está à vista."

E onde estaria esse limite, que não está à vista? No caso de Brás, na estrutura escravista e em seus desdobramentos perversos como o favor, o mandonismo, a miséria, a exploração ilimitada, o atraso. Com o narrador brasileiro o mascaramento dessa iniqüidade se dá em tom de piada: ninguém parece mais inatacável que nosso jovem patriarca, culto e volúvel; afinado com as tendências liberais mais modernas do mundo livre.

E quanto a Boris? Bom, seu cinismo hiper-crítico não precisa desviar-se da crueza de certos assuntos, que Brás contornaria com um sorriso sarcástico. Ao contrário, ele trás esses temas à tona com violência calculada, para que as contradições de que participa não sejam imediatamente visíveis no meio em que se movimenta. Como efeito colateral, a banalidade de sua rotina é constantemente interrompida por acessos de fúria e ansiedade, cujo avesso são um desprezo pelos que ele considera "inferiores" e surtos de megalomania.

Muitas vezes a sensação de inadequação pode estar relacionada a um conflito do sujeito com as demandas do supereu, que representa o ideal. Na atual fase do capitalismo o supereu coletivo (ideal coletivo) não é mais aquele do sacrifício pessoal e do trabalho duro, mas sim o da satisfação irrestrita e imediata dos desejos. Esse imperativo de gozo leva os indivíduos a experimentar ansiedade, pois a constante troca de objetos de atração desestabiliza o eu, que em sua busca por satisfação total termina por encontrar ansiedade e insatisfação. Mas é possível criar uma barreira contra essa “incerteza”, fortalecendo a própria identidade, através de uma atitude cínica, ligada à auto-afirmação e ao rebaixamento do outro. Seria este o caso de Boris Yellnikoff? Para descobrir devemos retomar a narrativa num esforço investigativo, e penetrar a trama de ocultações criada pelo protagonista.

A sorte dos pobres

(((Quero me livrar dessa situação precária))))

Quando a narrativa de Boris se impõem (momento em que começa a discutir com a câmera) um véu de plasticidade cai sobre o que está sendo mostrado: os personagens são imediatamente tipificados, sacrificados em sua verossimilhança para suavizar a realidade, ao mesmo tempo em que protegem a figura do narrador. A descrição dada por ele de sua primeira tentativa de suicídio é ilustrativa: Nesta cena ele discute com a ex-esposa e ao final se joga pela janela. A conversa entre os dois soa um tanto teatral, nada nela antecipa a gravidade do que está para acontecer. O que encontramos é um discurso bem amarrado de nosso narrador e suas razões para odiar a tudo e a todos. A esposa pouco fala, e não conhecemos sua versão dos fatos. Ela talvez tivesse uma ou duas coisas a dizer de um sujeito que se apresenta como insociável, beberrão, mau-humorado, que inveja o sucesso da mulher, não tem apego ao filho, intercala surtos de fúria autopunitiva com sadismo, hipocondria... Resumindo, um tipo egoísta, que entroniza o próprio sentimento de culpa e vampiriza a pessoa com quem se relaciona através de rituais absurdos e crítica constante. Como se vê os eventos são todos reinterpretados pelo narrador, que trata de destacar ou acobertar o que lhe convém.

Seguindo essa linha fica mais fácil compreender o primeiro encontro com sua futura esposa: Boris está com um grupo num restaurante e é abordado pela mãe de um aluno, a quem ele humilha de forma desprezível. Por conta disso os amigos o abandonam. Ele caminha para casa sozinho e num beco escuro é abordado por uma moça, que ele acaba por receber em casa.

Analisemos por um instante o gesto desinteressado de Boris e a atitude da moça em dificuldades. Ao observarmos texto e contexto em separado talvez consigamos um vislumbre "do todo" (big picture) ocultado pelo narrador e, quem sabe, nos aproximar um pouco mais dos fatos. No encontro com Melodie (a moça em apuros) encontramos o mesmo procedimento, em que a realidade é apresentada de forma abrandada, de modo a destacar a engenhosidade do narrador. Diante dos ataques de Boris, que está decidido a se livrar dela, a moça aceita as agressões do outro com uma máscara de candura e simplicidade excessivas, nascidas do medo de ser enxotada. Seu nervosismo é grande, ao ser perguntada sobre o quê gostaria de comer ela enumera uma lista de frutos do mar como seus pratos favoritos. Depois de lhe oferecer uma lata de sardinhas Boris, tentando convencê-la a voltar para casa, fala de jovens asiáticas cheias de sonhos (que chegam ao cais como peixes?) que acabam na prostituição.

Sabemos que Melodie vem do sul profundo dos EUA, onde o ranço da tradição escravista-patriarcal resulta em mulheres reprimidas e subordinadas à família (asiáticas? polacas? latinas?). Como se vê não faltam alusões a uma relação de dependência ligada ao concubinato e/ou casamento. Todas coroadas pela brutalidade de Boris, que talvez não tivesse recebido a moça (contratado?), não fosse a cena patética no restaurante minutos antes.

Já podemos sentir até onde vão as interferências de nosso narrador. As coisas ganham uma clareza extra quando observamos os limites de sua consciência na configuração das demais personagens e nos eventos que ele não presenciou.

Ricos entre si

(((Prisoners of love - Blue skies above - Can't keep our hearts in jail)))


Melodie St. Ann Celestine

O que sabemos dessa personagem é que ela fugiu de uma família opressiva junto de um músico, seu primeiro parceiro e, provavelmente, sua primeira decepção. Ao se ver sob a proteção de Boris (que apesar da grosseria e da personalidade caprichosa, era o oposto de seus pais) ela decide que não quer se afastar dele. E não é curioso que, a partir de então, quando o narrador toma a palavra, ele está quase sempre andando por um bairro asiático? Ora comprando em uma peixaria com letreiros em chinês, ora saindo de um açougue típico ou comendo em um restaurante? A menina que toma seu bispo no jogo de xadrez e é trapaceada por ele também é asiática. São alusões do narrador que sugerem o limite da contradição (a exploração indiscriminada do novo capitalismo asiático? A condição da mulher em tais sociedades? A migração em massa dessa mão-de-obra?) como pano de fundo.

Bom, a união dos dois, que acabam se casando, chega ao final quando Melodie se envolve com um ator (que o narrador representa com tintas exageradas, num esforço para torná-lo "irresistível" para uma moça ingênua.Aliás o nome Randy Lee James, dado ao personagem, é uma piada pois "randy" é uma gíria para excitado), levando Boris a uma segunda tentativa de suicídio.


Marietta Celestine

(((Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu)))

A mãe de Melodie , Marietta, aparece num momento de estabilidade do casal. A postura de Boris é a mesma: debochada, cáustica, desfazendo dos sofrimentos e da religiosidade da mulher. A tensão que se cria é cuidadosamente sufocada pelas tiradas engenhosas e pela música incidental, apenas para que a figura do narrador, com suas racionalizações, se aproveitem dela, colocando-se acima de todos em cena. Marietta é considerada uma antagonista para Boris. A mulher conservadora, que a princípio teria uma devoção exagerada pela filha, acaba por se tornar uma fotógrafa reconhecida e uma pessoa liberal, envolvida num relacionamento a três. Ela (ao freqüentar diversos parceiros e se estabelecer com dois dele) parece reconhecer o que realmente está em jogo nas relações em que a filha, e ela mesma, estão envolvidas. Seus trabalhos representam recortes de partes do corpo e praças (como corpos à venda num ponto de prostituição? Como traseiros e seios comparados a frutas? Como peixes num mercado de peixes?). Há também uma referência a uma declaração dela que relacionaria “liberdade humana e perversão sexual” que, segundo o filósofo seu parceiro, seria cheia de “imaginação erótica”. O que seria isso? Um elogio neo-hippie do amor livre? Ou uma crítica à perversão que priva de liberdade pessoas submetidas à exploração sexual? Aqui Boris não nos deixa indicações claras. O que ouvimos dizer é que nas artes plásticas algumas artistas de inspiração feminista discutem a questão de gênero, exploração e identidade de modo profundo e original. (http://www.cindysherman.com/)



John Celestine

(((o homem nasce sem maldade em parte nenhuma do corpo)))

Quando o pai de Melodie aparece sua ex-esposa, Marietta, já havia se transformado. Boris o representa como um branco conservador, membro da associação nacional do rifle. Aqui a mesma lógica se segue: o narrador aparece acima dos eventos, diverte-se em colocar John em situações ridículas e reveladoras (mas nos perguntamos se esse tipo, numa representação menos parcial, não seria ainda mais intratável e rude que o narrador).

Como que para desmoralizá-lo e afastar-se dele, Boris no apresenta sua saída do armário com tintas exageradas, num tom que, ao se pretender analítico e engraçado, vem carregado de estereótipos preconceituosos, maquinados pela ansiedade de ser “descoberto”. O parceiro de John (que tem certa semelhança com Oscar Wilde, além de ter sido batizado Kaminsky. Kaminsky era o nome de batismo de Mel Brooks, que era mestre em criar situações inusitadas a partir da tensão erótica entre as personagens, conferir The Producers) em dado momento diz que os homossexuais "sempre têm interesse" no parceiro, diferente dos héteros, o que nos parece mais uma versão distanciada e caricata dos papéis sexuais que ele nos apresenta.

E falando em papéis sexuais, o narrador toma o cuidado de se colocar como inadequado para todos eles, como se quisesse proteger as feições de seu desejo "distribuindo-as" entre as personagens, que ele manipula e ofende para dar lustro ao próprio isolamento.


O papel das idéias

(((I can see into the future)))

A intenção final de Boris é afirmar-se como um gênio não reconhecido. A insistência com Beethoven, cujo temperamento excessivo dava conta de uma personalidade difícil, é um esforço para aproximar-se da genialidade pelo seu avesso, ou seja, o seu momento final: quando o sujeito, já consagrado por uma obra monumental, tem a vida transformada em exemplo (ainda que para prejuízo da obra em si, e mesmo da idéia de "exemplo"). O talento não confirmado de Boris, escondido num campo específico da física, e que não alcançou o reconhecimento de seus pares, não tem força para transformar as esquisitices de nosso narrador em indícios de uma "uma compreensão extraordinária da realidade". Assim, ao envelhecer frustrado, percebendo a intensificação de seus sintomas, o protagonista nos apresenta uma história em que sua genialidade reiterada (e difícil de explicar) aparece em contraponto a papéis sexuais com os quais ele não se identifica, e que lhe provocam ansiedade. No filme encontramos referências mais ou menos abertas à prostituição, casamento de interesse, pornografia, exploração, violência contra a criança, e outros temas que, ao serem acobertados pela banalidade, servem para emprestar força à crítica de Boris, que se utiliza dela para sair-se como um furioso e intratável "inocente de tudo".

Entregues os procedimentos do narrador o que nos sobra é o diretor, que está associado ao protagonista de forma “promíscua” e, por isso mesmo, plena de honestidade. O prazer que (Boris nos aconselha) deve ser tomado da vida, será sempre fruto da flexibilização da culpa, que agora não nos ameaça com proibições ao gozo, mas com a preocupação constante de não saber como gozar. O supereu “em negativo” que Boris representa, na contramão da “liberdade perversa” da alta classe nova-iorquina, não faz mais que procurar por satisfação narcisista.

E pensando na impotência psíquica: não seria o Emplastro Brás Cubas uma espécie de Viagra metido a Nona Sinfonia?


(Os títulos e a citações são do livro “Um mestre na periferia do capitalismo” de Roberto Schwarz)

Até!