quinta-feira, 20 de maio de 2010

O sonho dentro do sonho - Alice de Tim Burton


her name is Mary-Ann...










"A candy-colored clown they call the sandman..."

É isso aí, o filme em 3 dimensões conta um história que oscila, ela também, entre uma segunda e uma terceira "esferas de consciência". Elas alegorizam os desafios enfrentados por um ‘eu’ sob grave ameaça. Mas como assim?

Pra ajudar podemos ler a cena do noivado secreto que inicia o filme como um sonho. Não apenas porque os personagens sejam apresentados de forma tipificada e inverossímil, mas principalmente porque a situação aterrorizante que se desenha (a de uma moça que não tem a menor influência sobre o próprio destino, passada adiante em casamento como uma mercadoria) não parece impactar a protagonista de forma direta. Ali, como num sonho, sua identidade se encontra esfacelada, distribuída entre aquelas figuras que decidem sua sorte. Daí que ela começa sua investigação acompanhando o coelho, o desejo encasacado, forçada a regredir a uma fase do desenvolvimento em que esteve diante de descobertas, e escolhas, igualmente terríveis.

Ao pé de uma árvore partida está o acesso que leva ao segundo sonho ( não lembra os filmes do David Lynch, em que um tronco caído representa a derrocada momentânea do pai? A ausência de autoridade é experimentada como a vertigem da indefinição, a oscilação do eu diante dos chamados do desejo).

Neste terceiro nível a identidade de Alice é posta em questão de forma direta, e os obstáculos da cena anterior assumem feições alegóricas ainda mais "primitivas" (talvez não seja a toa que hajam tantos jogos de palavras, associando essa busca da consciência de si com aquela que se dá nos primeiros estágios da aquisição da linguagem).

Mas que noticias nos dá essa vida subterrânea daquilo que acontece na superfície da superfície? Lá onde a história não chega a ser contada? Bom, vamos tentar mais afirmações arbitrárias:

- A rainha vermelha está em clara relação com a figura paterna. Ela demanda uma série de caprichos violentos (que são como as "coisas impossíveis" em que cria o falecido pai), e faz uma idéia tão exagerada de si mesma que bloqueia qualquer forma de autocensura. A desproporção da cabeça em relação ao corpo nos lembra uma criança de colo, que fala apenas para expressar suas vontades, aos gritos. A ligação possessiva com o valete/pai/cunhado representa os limites dessa cegueira, que para tranqüilizar-se espezinha os mais fracos em busca de auto-afirmação.

- já a rainha branca aparece como um exagerado supereu materno, cujos maneirismos e não me toques remetem ao sacrifício do desejo da fase edipiana, em que a mãe se converte num modelo de passividade e espiritualidade para a menina.

- Apresentados tais extremos de identificação devemos chamar a atenção para a figura do chapeleiro, que funciona como um alter-ego masculino para Alice (ele se confunde com os gêneros, detesta a rainha vermelha/pai que o separou da antiga harmonia com a rainha branca/mãe. E não seria ele um híbrido das duas rainhas?).

- Como num sonho, cada personagem pode ser desdobrado como aspectos da personalidade de Alice, e depois interagir em grupos restritos, que articulam informações específicas sobre a constituição da identidade da moça. O que todos esperam dela, a destruição de Jabberwocky, é a assunção do desejo, que advém do sacrifício do desejo pelo pai (e do pai). Decapitado o monstro o eu/Alice recupera certa inteireza de si e dá um passo em direção à subjetividade.
Então a história retorna para o cenário de sonho anterior, e os personagens se revelam para ela em sua dimensão simbólica. Segura de si ela os dispensa com conselhos racionalizantes, que funcionam como barreiras a defender sua individualidade (e de novo fazem eco com as crenças nas coisas impossíveis do pai).

Como a recusa ao casamento não resolve a contradição, pois ela continua privada de liberdade, a protagonista estabelece um segundo contrato com a figura paterna, propondo expandir a distância que a separa daquele meio. Recua para um momento posterior do desenvolvimento do eu, não mais a fase egoísta e infantilizada da rainha bebê, mas uma aventureira adroginia pré-adolescente. Na proa do barco que a levará para China ela está vestida com uma espécie de casaca/vestido, e tem os cabelos arrumados num modo que nos faz lembrar do chapeleiro ou da tia Imogene (parece que Imogen é o nome de uma personagem de Shakespeare. Falsamente acusada de adultério ela deve fugir do marido, através de uma floresta, vestida como um homem).

http://en.wikipedia.org/wiki/Imogen_(Shakespeare)

A custosa emancipação feminina (que não pode realizar-se naquele contexto histórico) aparece como uma intuição da moça. Pois seria apenas no mundo liberal, do fluxo livre de mercadorias e pessoas (mercadoria-pessoa), que mulheres em massa poderiam se livrar do julgo da dependência e da infantilização.

Mas, pensando nas condições da produção industrial, ontem e hoje, devemos nos perguntar: o que aconteceu com Adèle Hugo?

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