quarta-feira, 2 de junho de 2010

Raio-X do pai cebola. (Los Abrazos rotos, de Almodóvar)





“We passed upon the stairs, we spoke of was and when…”

(((looking through a glass onion)))

Comecemos pela cena que abre o filme, já que ela exemplifica o movimento que nos propomos fazer na nossa leitura da história. Nela, que parece o recorte de um material bruto de filmagens, uma moça espera em um ponto para servir de referência para o enquadramento da câmera, e é substituída em seguida pela atriz principal. Aqui (como num exercício de investigação) poderíamos arriscar uma regressão vertiginosa, que nos revelasse algo da dinâmica que está em jogo na constituição do filme: e se este “conteúdo bruto” tiver relação com o sujeito e seu objeto de desejo? E se este lugar (o do nosso objeto de atração) for um espaço “emoldurado” em que as pessoas vão se sucedendo ao longo da vida como as duas moças que trocam de lugar? Admitindo esta hipótese podemos partir em direção ao passado profundo desse “olhar” e nos perguntar quem, entre as pessoa que ocuparam o mesmo posto na consciência, foi a primeira e traumática revelação da própria sexualidade (em Tebas, um casal vive em pecado...).

“He Said I was his friend – Which came as some surprise...”

(((Harry Caine – Hurricane e a trindade paterna)))

Antes de entrarmos diretamente na história lembremos outro filme de Almodóvar, retomado no enredo deste como desencadeador dos eventos: O “Mulheres
à beira de um ataque de nervos” (se alguém acha que é algum outro, ou outros, me diga, por favor). Este filme tem uma seqüência inicial muito curiosa, em que um tipo maduro, de voz aveludada, vai se declarando para todas as mulheres que cruzam seu caminho. Ele é uma constante ausência na história, pois rompe com a protagonista logo no início e desaparece, enquanto o eco de suas aventuras repercute nas personagens que ele enredou. Vamos aqui botar um rótulo nesse sujeito (ou mesmo reconhecê-lo naquela moldura do desejado) para que ele não nos escape também: se trata de uma figura paterna obsessiva e caprichosa, disposta a tudo para manter-se ativa enquanto vampiriza sentimental e fisicamente suas companheiras. Agora podemos falar de “Los Abrazos Rotos”, em que esta mesma figura é apresentada de forma fragmentada, oscilando num eixo triplo.

“I thought you died alone, a long long time ago…”

(((culpa pelo gozo e o gozo na culpa)))

Aqui o diretor retoma alguns tipos conhecidos de outros filmes seus como o escritor norte-americano, o voyeur caladão, o marido traído, o deficiente físico, etc. Diremos que estas facetas têm um caráter paternal porque elas representam disposições masculinas diante do desejo. Servem, sobretudo, para proteger o “eu” do impasse criado pelo complexo de édipo, e da culpa dele decorrente. Quem já viu um outro filme em esses tipos aparecem (Kika) há de reconhecer que eles são bastante problemáticos, e que as mulheres atraídas por eles são chamadas a se libertar. No “Abrazos Rotos”, porém, eles estão arranjados de outra forma, a começar por Harry Caine cuja cegueira (como a do rei Édipo depois de sua investigação ?) resulta num sujeito pacífico e desapegado (quem se lembra de “Kika” sabe que ali ele aparece como um psicopata, assassino de mulheres). Os outros dois personagens que articulam o trio são: no passado, Ernesto pai e Ernesto filho; e no presente, Ernesto filho e Diego. Judit e Lena também aparecem em relação especular, como um antes e um depois da maternidade. Mas vejamos como os trios interagem nos dois momentos.

“I searched for form and land, for years and years I roamed…”

(((Fiz meu berço na viração... só adormeço no furacão)))


O esquema funciona de forma mais clara quando associamos estes três momentos da identidade paterna com os três níveis básicos da consciência (eu- supereu - id). Vale lembrar que nenhum desses níveis pode existir de forma independente e, da mesma forma, só podemos associar a figura de Mateo-Harry ao “eu” tendo como contrapontos:

1- No passado: Ernesto pai - “supereu”; Ernesto filho – “id”.
2- No presente: Diego - “id”; Ernesto filho - “supereu”.

E não poderíamos ler assim? Com o início do romance entre Lena e Mateo Ernesto pai é colocado à parte da ação. Ele observa tudo de um ponto isolado, tentando exercer controle sobre os demais com desmandos e caprichos (e não é ele que primeiro vem substituir o pai morto de Lena? Como os velhos que casam e recasam a procura da parceira ideal, que deverá ser sempre como uma filha, versão rejuvenescida e subjugada da mãe. Parceira a ser substituída, eventualmente, quando começar a fazer figura demasiado “maternal”.)
No outro oposto teríamos Ernesto filho, sufocado pela presença opressora do pai a quem ele obedece com fidelidade canina. Como sua sexualidade não pode encontrar expressão direta, graças à dependência em relação ao pai-supereu, ele assume a feição ambígua do id reprimido e sem voz (as pulsões são silenciosas). Esta “impotência” dá satisfação de si ao pai através das imagens com que alimenta a perversão do velho. Não admira que com a viravolta de sua morte esse caráter desprezado assuma a posição paterna com a mesma voracidade misógina e masculinizante do Ernesto pai. Mas até mesmo este supereu gay e “superconsciente”, a par das motivações masturbatórias do pai, e de suas próprias, não deixa de fazer figura de mandão e moralista. Como os sujeitos esforçados na auto-afirmação ele anseia por um filme que represente sua dominância, e assedia o eu-Harry para consegui-lo. O seu documentário, que culmina com a tentativa de suborno por parte de Mateo, vem para revelar as motivações egoístas que estavam em jogo desde o princípio. Mas percebam como a relação entre o eu e este novo supereu é mais harmônica que a primeira, pois mesmo levada a extremos as partes não podem se chantagear pelo objeto de atração (o filme), como fizeram com Lena (a essa chantagem do eu em relação ao supereu, e vice-versa, chamaremos culpa).

“I gazed a gazely stare at all the millions here…”

(((polymorphous subject)))

E Diego? Ele aparece como resultado dessa relação abrandada entre o eu e o supereu, liberadora do desejo. Daí que ele é apresentado de forma neutra ou indefinida, quase como um pré-adolescente às voltas com as primeiras descobertas sexuais. A cena em que os dois especulam sobre um filme de vampiros (gênero que pega carona nos conteúdos reprimidos da sexualidade) é curiosa, pois como já não “enxergam” a vigilância da culpa, que intensifica o prazer, eles passam a criar restrições sintomáticas, que vêm à superfície como uma deformação “incurável” e plena de gozo.
As mulheres, Judit e Lena, relacionam-se como um antes e um depois da maternidade, e estão engajadas na mesma batalha contra o supereu paterno e suas demandas “vampirizantes”. Por outro lado elas também representam um impasse feminino, certa atração “filial” que por vezes se desenvolve com relação ao companheiro. Esta “assunção da maternidade” num relacionamento entre iguais vem dar vazão a uma culpa primordial com relação à própria mãe, cujo marido ela uma vez desejou, ainda que “quase como a um filho”, o que aliviaria o choque desta descoberta. Pra conhecer essa ciranda feminina bem de perto vale a pena assistir o Cidade dos sonhos, do David Lynch (e Twin Peaks, e o Império dos sonhos!).

Até.












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