sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Catástrofe são os outros



                            tá fudida...


Se casar, não beba: 'Melancholia' e a metamorfose dos valores no fim [do fim] do mundo



Melancholia, here I go again [My my, how can I resist you?]


O filme Melancholia começa com uma seqüência de imagens em câmera lenta, que são uma espécie de vídeo clipe e resumo da história: a música de fundo que acompanha as cenas é o tema do filme Um corpo de cai [Vertigo] do Hitchcock: pra quem não se lembra dessa fita, a história gira em torno de uma mulher que deve mudar de identidade constantemente (por motivos que variam ao longo da trama), o que termina por levá-la à morte. A idéia da mulher fragilizada, ‘que não sabe quem é de verdade’, faz dela irresistível pro par romântico (um policial solteirão com medo de altura...), pois ele pode finalmente salvá-la, e a si mesmo, das incertezas sexuais da vida adulta. É claro que nesse processo ele termina por mortificá-la completamente, transformando-a numa espécie de manequim travestido [conferir The Pervert’s guide to the cinema, do barba, o Zizek]. Daí que esse tema musical perpassa toda a fita, sinalizando a ligação fetichizada [que transforma o outro em objeto] que se estabelece entre o eu e o ser valorizado [fetiche], entre o diretor e a pessoa filmada, ou mesmo entre os expectadores e as atrizes filmadas: todos estão sedentos pra consumi-las aos pedaços, nos diversos enquadramentos...





O filme é mais legal que o livro...

No que se refere ao videoclipe, a referência à fetichização pornográfica do outro é clara: as imagens são super-tratadas, estranguladas no tempo pra permitir o olhar fixo. Privadas de toda banalidade pra terem um efeito imediato de propaganda de perfume. Porém, a mensagem que as cenas articulam diante de nós é bem negativa: e vai à base do nosso modo de vida e de suas formas de reprodução.





Na primeira tomada temos o rosto de Justine com aparência doentia e apática, enquanto pássaros mortos começam a chover ao fundo: essa cena está para o quadro de depressão profunda que se segue ao fracasso do casamento da personagem: pássaros caindo mortos em pleno no vôo é uma imagem recorrente pra simbolizar uma perda irreparável: a descrição que Freud faz do melancólico é de alguém que teima em antecipar o sofrimento da perda do objeto: que trata o objeto de desejo como já perdido enquanto ele ainda está presente [“mourning in advance, mourning for something which is still here”].

Como vamos descobrir depois, Justine engaja em uma série de frustrações durante o ritual de seu casamento, que funcionam como uma espécie de fuga pela auto-sabotagem. A cilada da qual a noiva quer escapar [à custa do surto depressivo] vem inscrita no modo de ser das demais personagens. Principalmente nas relações de sua irmã Claire: dividida entre ser condutora de rituais da vida rica; e a mãe infantilizada pelo marido e infantilizadora do filho.

brigado E.


Essa casa não é miiinha...

Na seqüência, temos uma imagem do jardim da mansão onde se passa a história: a fotografia é ultra-estilizada: apaga a banalidade de um lugar cafona pra mostrá-lo como mercadoria vendável [nos moldes da indústria da propaganda, que busca a valorização de objetos para o lucro]. Caminhando na direção do relógio solar, no centro da cena, temos uma figura que parece uma das mulheres. Detalhe para a sombra dupla dos objetos, que recebem luz do sol e do planeta que se aproxima.




Riders on the snow

Em seguida aparece a tela de Pieter Bruegel “Caçadores na neve”, que se desfaz numa chuva de cinzas. Bruegel foi um pintor flamenco nascido em 1530, conhecido por retratar a vida popular e as paisagens de seu tempo: isso numa época em que cenas bíblicas, históricas ou retratos de nobres faziam o grosso da produção artística. A aparição dessa tela faz referência ao filme “Mirror”, do diretor Tarkovsky, em que essa mesma obra de Breugel também aparece: nessa fita, parcialmente autobiográfica, Tarkovsky retrata o que teria sido a juventude de sua mãe, seu próprio presente, e sua infância, oscilando os pontos de vista do filho, do ex-marido, da ex-esposa, e da mãe. Que a tela se desfaça em chamas no filme Melancholia parece apontar pra certo desgaste do realismo como forma. Talvez porque o realismo só poderia apresentar as contradições do presente como um tipo de telejornal, e essa aproximação já não surte efeito crítico num público calejado e insensível às notícias da barbárie pelo mundo.

Ou ainda: representaria um desgaste num modo de fazer cinema baseado na vida pessoal dos diretores, como fizeram Tarkovsky nesse filme Mirror ou Bergman em “Cenas de um casamento”. Claro que também poderíamos pensar no meio em que Bruegel viveu [convulsionado por revoluções religiosas, numa escalada de terror e obscurantismo] e entender o tipo de pressão que o diretor [que nunca pôs os pés nos EUA...] está fazendo alusão. Diz-se que em seu leito de morte, Bruegel pediu que algumas de suas pinturas fossem destruídas, pra poupar sua família de futuras perseguições políticas...




Os astros indicam mudanças pra você num futuro próximo...

Em seguida temos o planeta Melancholia, ou a Terra, contra um corpo celeste vermelho de fundo. Mais adiante teremos outras “danças” entre os dois planetas, que vão se chocar ao final, no que nós entendemos como a Terra encontrando a si mesma no abismo. Aliás, aqui o elemento de fantasia absurda, [um planeta-espelho que surge de detrás do sol e traça uma rota pra nos atingir] serve pra mascarar as catástrofes óbvias que ameaçam nossa existência hoje. Mas, sobretudo, as catástrofes políticas e econômicas, que muito antes do que secas ou terremotos podem levar um lugar à ruína total... Não é estranho que, mesmo diante de um possível fim do mundo, lá pelo final do filme, continuem todos tranqüilos e isolados na casa-grande? Se algo como essa tragédia realmente ameaçasse a Terra, nós teríamos o caos total com quebra-quebra, arrastões, especulações em cima de preços, repressão irrestrita das forças policiais, etc. A fita contorna essas questões ao deixar todas as informações relevantes com o marido cínico de Claire, que também luta por se enganar. Sim, o maridão Jack Bauer, que tortura todo mundo pra salvar o mundo, é aquele que sustenta a encenação do “tudo vai bem”, ao que a esposa está disposta a acreditar e se submeter.
Esse marido ideal é provedor de segurança e ignorância [little father], dono do cavalo Abraão, ligado ao filho e às posses: ele deve ser entendido com relação ao pai obsceno de Justine; com o chefe [obsceno] da noiva publicitária; com o futuro marido careta e sem espírito; com o agregado sem talento do chefe, que ela transa no campo de golfe; e até (principalmente) com o sobrinho, que por não ter assumido ainda a caracterização viciosa dos outros personagens masculinos, se liga à “tia quebra aço” [aunt steelbreaker], solteira por opção (decepção), com quem ele sonha construir as cavernas [abrigo anti-artilharia, bankers, comunidade fundamentalista, núcleo familiar?] do futuro incerto. Um mundo em que as pessoas vão perdendo o desejo mesmo de assumir certos papéis sociais, mas que o fazem mesmo assim, num esforço de auto-convencimento e [ou] pra atender demandas externas. [They know what they’re doing, but they’re doing it anyway…].





Uma negra e uma criança nos braços,
Solitária na floresta de concreto e aço...

A cena seguinte mostra Claire correndo no campo de golfe com o filho nos braços, enquanto os pés dela afundam no chão: o mesmo diagnóstico se aplica às duas irmãs, enredadas num quadro de depressão e [ou] apatia, que aparece extravasado nas imagens. O filho nos braços, carregado num campo movediço, representaria um casamento desgastado, lutando pra se manter [de um lado a esposa-mãe, de outro o marido-filho]. Se notarmos a bandeira que marca o local do buraco no campo de golfe, veremos que primeiro ela mostra o número 12 e em seguida muda pra 19. Lá pelas tantas no filme, o marido de Claire diz que existem apenas 18 buracos num campo de golfe, o que faz desse ‘19°’ buraco uma espécie de aberração, de prolongamento artificial. A metáfora se aplicaria tanto à crise num casamento [com o pai que abandona a família], quanto pra vida no planeta, fraturada por instabilidades econômicas e naturais; enquanto se reproduz à custa de um modelo excludente, poluente, concentrador e à beira do colapso.






Of course my horse
[mas quanto tempo ele agüenta sem comer?]

Depois vemos o cavalo Abraão, encilhado e sozinho no campo, cair sobre as patas traseiras sem razão aparente. Essa ‘queda do desejo’ fundamenta o modo de ser das personagens todas: o marido arrogante e insensível, o filho apático e sem iniciativa, a dona de casa ritualística e superficial, a deprimida negativa e anti-social, etc. Como é o modelo familiar patriarcal tradicional que está em cheque [xeque...], a queda de um cavalo que se chama Abraão não precisa muita explicação: pois esse modelo bíblico é fundamento e origem da família autoritária tradicional [ainda que nesse cenário de fim do mundo, esse modelo mesmo é que se vê a ponto de desaparecer, deixando no seu lugar um vazio perigoso...].





Jesus don’t want me for a sunbeam

Segue-se a cena de Justine de braços abertos contra uma floresta, rodeada de insetos noturnos. Como o cavalo Abraão encilhado e perdido [lembrem-se que ele se recusa a cruzar a ponte, o que obriga a moça a surrá-lo, mas sem sucesso, pois Abraão não pode passar pra ‘nova fase’...], aqui temos uma espécie de Cristo mulher na figura da atriz. O sacrifício performático de Cristo, que inaugurou uma nova fase do pensamento ocidental [assim como a unidade do povo judeu por meio da tradição inaugurada pelo patriarca Abraão]; agora encontra sua forma desgastada nas mulheres idealizadas do mundo do cinema. Lembremos que são esses filmes americanos que dão forma à individualidade dos expectadores ao redor do mundo. É muito comum que as pessoas sintam prazer em pensar na própria vida como um filme, como se a narrativização de seus atos justificasse pra elas mesmas o porquê de suas escolhas e atitudes. Isso num tempo em que essa narrativa da vida, com fotos e vídeos e textos por toda parte, saturam nossa existência por meio de uma exposição excessiva e pornográfica das alegrias e tristezas de cada um. Assim, na modernidade, o Cristo exemplar, com sua tragédia de luta e submissão ao destino, é substituído pela vida das vedetes do cinema e outros famosos. Ainda que esses famosos não possam cumprir esse papel senão tragicamente também, revelando as incongruências e contradições inerentes à existência de todos nós [vide as separações, espancamentos, processos e troca de humilhações entre a gente rica e famosa].

Uma cena que conversa com essa postura ‘Cristo Redentor’, ou estrela internacional, da atriz, é aquela em que a Justine sai de casa de madrugada e é seguida pela irmã, que a flagra nua, tomando um ‘banho de lua’ sob a luz do planeta que se aproxima. Não seria essa a imagem de uma atriz famosa que expõe [ou vê exposta] sua nudez ‘diante do planeta todo’? Cuja vida é observada, discutida e banalizada numa exposição instantânea e global através dos meios de comunicação? Dá pra dizer que uma das formas desse planeta Melancholia seja a própria internet, que como as conseqüências reais de uma hecatombe mundial, vai ocultada no filme de propósito, aparecendo apenas pra dar informações parciais e desencontradas.






Well, I like her too. I know she likes you

Depois temos uma tomada da frente da mansão, com Justine de noiva à esquerda, Claire com vestido de gala à direita e o menino no centro. Sobre cada um deles, no céu ao fundo, vemos três planetas: o que está sobre Claire tem a face cheia, enquanto os outros dois sobre o menino e a noiva têm metade da face coberta. Se pensarmos na relação entre Claire e Justine como um antes e depois do casamento [noiva-mãe], fica claro porque o astro sobre Claire [claridade?] tem a face cheia. Talvez porque ele seja o sol num amanhecer ou fim de tarde, enquanto pro outros dois ficam sobrando o planeta Melancholia e a lua. Nesse quadro as figuras do noivo e do marido de Claire estão concentradas no menino ao centro, que seria o proprietário de tudo, ao mesmo tempo que o amante perfeito, mas rejeitado pela noiva. Assim, a face iluminada do planeta sobre o menino vem da parte de Claire que, casada com o mesquinho Jack Bauer, aceita ser “o sol” da família, lutando pra mantê-la coesa em seus rituais [e esconder o “planeta Melancolia” atrás de si...]. Já a ‘noiva em fuga’, Justine, fica sendo o lado obscuro. Ou pelo menos alguém que tem “uma face mal iluminada”, incapaz de se iludir, assim como sua mãe amarga e o próprio cunhado, marido de Claire, que se mata [divórcio] ao entender que não poderia cumprir suas promessas de segurança.
 




Eu ainda não tenho vergonha do meu passado comunista...

Mais uma vez aparecem os planetas em contraste: a partir daqui eles têm uma desproporção enorme entre si, quase como se o mundo novo fosse absorver o antigo. Nos conta Wilhelm Reich, no seu The Sexual Revolution que nos primórdios da Revolução Russa, na União Soviética [U.S.], a desapropriação dos meios de produção e a reorganização da sociedade em coletivos, quase fez desaparecer as famílias na Rússia. Aparentemente num lugar sem propriedade privada, ou a figura de um pai provedor, o modo de vida familiar tradicional não tinha mais sustentação e tendia a desaparecer. Foi então também que se aplicou a legislação mais avançada do mundo na época, que igualava homens e mulheres em direitos, além de tirar dos ombros delas o fardo de criar as crianças sozinhas, afastadas das atividades produtivas e sociais. Houve também uma democratização dos métodos contraceptivos, e mesmo o aborto foi legalizado e disponibilizado às todas pelo estado.

Porém com a ascensão de Stalin, ou mesmo antes disso, esse modelo libertário começou a ser “corrigido”, e a idéia de família tradicional voltou a ser imposta através de uma legislação retrógrada; e da supressão da sexualidade dos jovens por meio de propaganda reacionária e sexualmente conservadora [na verdade foi mais complicado que isso: fica a sugestão da leitura...]. Nas palavras do autor: Uma sociedade autoritária e patriarcal precisa, necessariamente, preservar o casamento. Isso porque a instituição está fundamentada em raízes econômicas.

Mas então o que acontece com esse filme, que entrega a falta de energia com que as pessoas encaram o casamento hoje em dia? Por que mesmo as pessoas mais ansiosas e engajadas têm de lidar com certa “incerteza” quanto ao futuro? Ou mesmo com a falta de vontade [melancolia] de se ligar a alguém jurídica e sexualmente dessa forma?...





No family life, this makes me feel uneasy…

Parece que o mesmo que se passou na União Soviética pós-revolucionária está se passando conosco, nos dias de hoje [que vivemos algo que Zizek e Badiou chamaram de ‘comunismo liberal’]: se pensarmos bem, a vida amorosa e profissional recompensa aqueles que podem se dedicar a suas atividades sem estar atrelados a outras pessoas nos termos de um casamento ou maternidade [e paternidade, guardadas as proporções]. No filme, Justine é assediada por seu chefe em plena na festa de matrimônio: uma lembrança constante de que as relações de dependência [o futuro marido com seu “pedaço de terra”, o cunhado rico, o chefe desprezível e, emocionalmente, mesmo o pai, que ela queria que ficasse...] são uma ameaça à sua individualidade, e já não a seduzem como ela gostaria. E aqui podemos pensar no cavalo que não cruza a ponte, no carro que é grande demais pra estrada, no menino que oferece uma adaga de presente à noiva, na mãe que alerta pro vazio daquele ritual de aprisionamento, etc.




Eu do meu lado aprendendo a ser L[élê] ...

Na seqüência temos Justine no campo de golfe: da ponta de seus dedos, e do par de postes atrás dela, saem umas emanações elétricas, ou um fluido branco, o que talvez seja explicável cientificamente [nós não sabemos o que seja, se alguém puder ajudar...]. O que ouvimos dizer é que esse evento, de enxergar um fluido branco saindo das extremidades do corpo, é um sintoma comum da esquizofrenia. Na imagem, porém, esse dado sintomático, que seria só uma visão de Justine, aparece materializado nos postes atrás, o que invalida a idéia de que seja um sintoma dela [até porque os cabelos dela se levantam também, eletricamente carregados]. Então não seria como se essa ‘esquizofrenia’ viesse de fora? Como se ‘o mundo’ estivesse passando por uma espécie de distúrbio psíquico esquizóide, que o impede de enxergar a realidade dos fatos? É como se o universo de Justine, aquele dos rituais da vida rica, das relações familiares desgastadas, do trabalho rendoso e antiético na publicidade, viesse abaixo e mostrasse pra ela sua face delirante e fantasiosa. Tanto é assim que ela parece fascinada pelo fenômeno e, diferente da irmã, não tenta fugir no carro de golfe que aparece estacionado ao fundo.





À meia noite encarnarei no teu cadáver

A fantasia confessada por Justine à irmã durante a festa, se materializa na imagem seguinte, em que a noiva tenta arrastar fios de lã grossos enrolados em seu corpo. A cena se passa num gramado tendo um bosque de fundo, também ele enovelado por pedaços de lã cinza. Quem já teve um sonho em que não conseguia sair do lugar, ou tinha dificuldades pra se locomover, sabe os apuros que passa o ego [o eu] quando tem que lutar com forças instintivas de auto-proteção, ou com o assedio do supereu [o ideal] e do id [o desejo bruto, o cerne orgânico]. Diríamos que os fios de lã seriam o ‘supereu’ alertando, e fazendo piada, da falta de desejo do ‘eu’ de se casar. Ao mesmo tempo em que o ‘id’, o corpo da noiva, também representado pelo bosque ao fundo, se vê constrangido pelo vestido e pelos fios de lã, ambos opressores do eu [ego] em conflito. Essa contradição interna, de ter [ou se obrigar] a fazer algo sem vontade real de fazê-lo, é que constitui o quadro de depressão e ansiedade, epidêmicos em nossa época. De acordo com a ideologia do consumo reinante, as pessoas não devem se apegar a um objeto por muito tempo, preenchendo esse vazio por meio do consumo constante: a expectativa de felicidade por meio da troca de objetos de desejo, provoca uma escalada de ansiedade, e nunca se satisfaz. Já o desapego que se segue à posse da mercadoria ansiada, como que desconecta o sujeito do presente e das pessoas [coisas] em redor, resultando em depressão e isolamento.




Céus e terras passarão...

Depois de mais uma aproximação dos planetas [que então parecem ter o mesmo tamanho], vemos um sofá enquadrado numa sala de estar do casarão: através da janela, uma das árvores do jardim principal está em chamas. Aqui as especulações sobre o sentido da cena ficam um pouco mais difíceis por falta de elementos, mas se pensarmos nesse ponto da casa durante o filme, veremos que foi dessa janela que Claire viu o marido e o filho tirando fotos em celebração ao planeta que se aproxima. Foi daí também que ela viu Justine sentada no muro de pedra sozinha, olhando a paisagem com desalento. Aqui gostaríamos de reforçar a ligação entre o marido e o filho, que estariam celebrando, inconscientemente, o fim do mundo [da família] que se aproxima; enquanto Justine representaria o avesso deprimido da apatia de Claire, cujo mundo perfeito está a um passo do fim. A “sarça ardente”, representada pela árvore em chamas, seria esse momento de clarividência do negativo que se aproxima [separação-fim do mundo], e impõe a transformação violenta do presente. Se lembrarmos da narração bíblica, esse evento inaugura o pacto de luta [struggle] do povo judeu contra a escravidão.




Apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

Segue-se a imagem de Justine vestida de noiva e sendo levada pela correnteza de um rio ou córrego, segurando um buquê de flores sobre o peito: a atriz parece estar com muito frio, e nos encara com o rosto contorcido pelo desconforto. A comparação com Ofélia, personagem da peça Hamlet de Shakespeare, aqui vem a calhar: como se sabe, na peça, a personagem de Ofélia se vê em meio aos conflitos de seu amado príncipe Hamlet e os anseios de vingança deste contra o tio usurpador do trono. Hamlet termina por assassinar o pai da moça que, tendo sido também renegada pelo príncipe, acaba enlouquecendo e se suicidando, atirando-se nas águas de um rio. O desfecho trágico das personagens femininas em Shakespeare é aqui retomado em chave paródica, como uma antecipação negativa que a noiva faz de seu próprio desamparo. Pois é da tradição milenar e patriarcal que a moça em idade de casar seja passada pra um noivo escolhido e aprovado não por ela, mas pela família: daí o frio na barriga se casar e descer “rio abaixo”, como quem se lança no destino sem certeza do que virá ou [como no caso de Ofélia] porque já não vê alternativa.




O encontro de dois mundos

Por fim, antes do encontro cataclísmico dos planetas, vemos Justine saindo do bosque e se aproximando do sobrinho, que usa sua adaga pra afiar um galho retilíneo, longo e pontiagudo: Justine também carrega uma lança feita a partir de um galho ou tronco de árvore, e vem da mata na direção do menino. Aqui podemos pensar mais uma vez na pintura de Bruegel, que mostra um grupo de caçadores cabisbaixos sobre a neve, voltando da caçada de mãos vazias. Eles também carregam lanças compridas enquanto saem da mata em direção à cidade. No caso do filme, porém, as lanças não serão utilizadas pra uma caçada, mas pra construir uma espécie de abrigo simbólico. Enquanto os caçadores na tela de Bruegel voltavam pra uma cidade complexa, de vida ativa, as três no filme experimentam umas espécie de regressão a formas primitivas de organização: é como se fizessem o caminho contrário ao dos caçadores, saindo da vida segura e rica da casa-grande, para o desamparo e a incerteza do campo aberto.

Nesse sentido é bastante positivo o gesto seguro e desencantado de Justine, abrindo mão da despedida blasé e classista proposta por Claire [vinho no terraço com música erudita], pra engajar o menino, e a si mesma, numa tarefa final em equipe: esse trabalho não alienado e independente quer se coloca acima do desespero e da apatia. Algo como a construção das cavernas, que o menino tanto pedia à tia, ou um erguer de trincheiras pra enfrentar um inimigo mais poderoso com dignidade. Aqui nós vemos que a aparente “lucidez” de Claire se deixava iludir pela proteção do marido e pelo papel que ela exercia na vida conjugal. Assim, com isso se iniciaria [se o mundo não estivesse acabando...] a fase depressiva de Claire, e pra Justine um recomeço autoconsciente e, por conseqüência, mais rico de experiências.





Conclusão?
 Se ficar contento: é cachorro. E se ficar contenta: é cachorra...

Já a criança entre el’s 2 seria uma espécie de ser que estar por vir, cuja vida íntima deve se formar a partir dos escombros dos valores do mundo antigo, devastado pela tristeza de [não] saber o que será do amanhã.






Até!



http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/antonio_gedeao/agua.html

http://www.releituras.com/evandroaf_fu.asp

http://en.wikipedia.org/wiki/The_Mirror_(1975_film)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pieter_Bruegel_o_velho

http://www.youtube.com/watch?v=gCTMM1iZ5Lw&oref=http%3A%2F%2Fwww.openculture.com%2F2010%2F07%2Ftarkovksy.html

http://www.youtube.com/watch?v=ZD3BRAiMrAw

http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/antonio_gedeao/agua.html

























quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pai contra Mãe



pé da vida...

‘A Árvore da Vida’ ou a poda d[n]a família autoritária


O enredo de ‘A Árvore da Vida’ é bem simples, e pode ser condensado numa dinâmica familiar bem intuitiva pra todos nós. Mas se antes tínhamos dito que a narrativa girava em torno do filho mais velho, que mascararia as questões de ordem sexual através da estetização do registro; gostaríamos de voltar atrás nessa afirmação.


Olhando mais atentamente ela não procede: o filme não emana de nenhuma personagem específica, e não faz mais ocultações de ordem erótica do que qualquer pessoa deve fazer durante o processo normal de aquisição da linguagem. Aliás, quando o filme recua até o princípio dos tempos, é pra recordar nossa vida primitiva de antes das palavras, o passado “eterno” in-útero, e dos primeiros meses de vida, do qual ninguém pode se lembrar e que, por isso, se liga ao misterioso principio do tempo ele mesmo, com [T] maiúsculo.


The Family Glass

(entrando no banheiro pra chorar...)



Poderíamos dizer que a caracterização dos atores tem um efeito de verdade pelo seguinte motivo: todos eles devem viver personagens equivalentes a suas figuras parentais a uma distância de duas gerações. Por exemplo: o casal que faz os pais dos garotos, vive personagens que equivaleriam aos seus avós reais quando jovens, ou que pertenceriam à mesma geração de seus avós. Já os meninos, uma geração anterior a dos atores-pais, devem viver como viviam seus avós reais quando garotos, ou seja, duas gerações antes da deles. No meio dos dois grupos está o diretor, que poderia ser pai dos atores que fazem o casal, e avô dos meninos que fazem os filhos.

Esse tipo de dinâmica é muito importante pra tirar momentos de verdade dos atores, que em suas vidas pessoais lidam com versões mais ‘brandas’ dos valores que caracterizavam a época de seus pais e avós. A postura militar e patronal do pai, por exemplo, é tão alienígena pros garotos-atores, quanto deve ter sido pro galã exercitar aquela forma de controle abusivo e fora de moda (inda mais sendo esse ator pai de muitos filhos, como todo mundo é obrigado a saber...).

Mas voltando à afirmação anterior, de que se tratava dos afetos incestuosos do filho mais velho a serem acobertados, bom, na verdade os afetos de todos é que vão nessa linha, e gostaríamos de localizá-los.



Pai – O Filho Único

(difícil [quero] ser a pessoa mais odiada do mundo na minha casa...)




Com certa espiritualização da figura materna, seguida pelo acobertamento do pai como um tipo autoritário e distante, temos as coordenadas de um relacionamento desgastado que, longe de qualquer horizonte de transformação, deve resistir contra o tempo forçando a tipificação dos dois (o pai provedor e caprichoso e a dona de casa submissa e polida). Pegos na linha de fogo de um casal em desagregação (que, porém, não há de se separar, como a esmagadora maioria dos casais de então), estão os filhos, que devem dar prova da felicidade perdida (ou sacrificada em prol deles) sendo perfeitos. Quem leu os poemas de Cora Coralina sabe como esse espírito sádico e moralizador da parte dos adultos faz o tormento de crianças todos os dias, pois elas acabam funcionando mais como atestado da sexualidade dos pais, do que como parceiros bem vindos ao desafio da vida. A partir de então, os pais podem finalmente deixar de ser ‘eles mesmos’, acreditando-se ideais para as crianças, que sempre precisam de mais “exemplo” e “disciplina”. Esse tipo de atitude, resultado da vida sexual frustrada dos casais, acaba por encobrir a sexualidade infantil, cuja felicidade espontânea é vampirizada pelos adultos, através da repressão que eles impõem sobre os pequenos. Daí vem o culto à ‘inocência da criança’, ou à ‘pureza daqueles tempos de infância’: essa atitude é alimentada por figuras parentais pra desviar a atenção da própria miséria sexual, criando horizontes de felicidade seja no passado (infância-juventude perdida, um trauma formador, a chance desperdiçada de fazer sucesso), ou no futuro (vida após a morte, amor perfeito, mudança de sexo, riqueza, câncer...).

Mãe – O Deus Pai

(agora vou pro céu com tripa e tudo)



Não nos deixemos enganar pelo discurso amoroso da mãe: ainda que mais positivo que o militarismo do pai, ele é uma conversa meio feudal de aceitação passiva dos fatos e defesa do grupo. É em torno da culpa pelo desgaste do casamento que esse discurso de amor e tolerância se reforça; enquanto a resposta sádica do pai (que se faz odioso, desnecessário e fora de lugar) precisa de longas viagens e, muito certamente, aventuras extra-conjugais, pra lidar com a pressão edipiana que a figura dos três meninos, e a esposa, impõem sobre ele.

Sim, todos lutam pela atenção da mãe: mas o único que a pode ter por completo deve manter o poder sobre ela e os demais, pra mascarar sua impotência. E sim, todos fogem à presença da mãe: seja nas viagens pra China e nas brigas sem razão, seja nas fugas em brincadeiras sem fim e gestos de rebeldia, que vão libertando os meninos da esfera sufocante do lar.

O Filho Mais Velho

(Satanás, por que me acusas?)




A pressão sobre o filho mais velho é mais intensa da parte dos pais: a criança chega num momento de felicidade relativa, e é a primeira a acompanhar a formação das personagens pai-mãe, que ela vai desencavando com sua presença. É também (em muitos casos) a primeira a testemunhar o desgaste da fórmula, e a querer, em dado momento, que aquele casal se desfaça pra que possa ter a mãe só pra si.

Se observarmos o momento do filme em que o menino está crescendo, veremos as mesmas coordenadas se repetirem anos depois, na adolescência (e que vão se repetindo em caráter cíclico ao longo da vida, como uma encenação inconsciente...): primeiro uma identificação com a mãe, depois agressividade com relação aos irmãos mais novos, seguida de aversão ao pai (que se manifesta de maneira indireta, como morder o tornozelo de uma visita, invadir a casa de uma vizinha, etc.). Na seqüência uma identificação com os irmãos, seguida de agressividade com relação aos irmãos e à mãe, que culmina com tentativas de controle, opressão e, por fim: em frustração.

Ao final de cada um desses ciclos, o filho mais velho se reconhece como “mais parecido com o pai”, ou seja, alguém que reconhece e despreza a solidão frustrada da autoridade (pai), mas não quer se identificar com a passividade da submissão (mãe). Aqui os caracteres paterno e materno tradicionais mutilam a experiência sexual: esse sintoma da moralidade burguesa tem como resultado um recuo às fases oral e anal do desenvolvimento:

“In the typical conservative family, the influencing of sexuality takes on a specific form which lays the basis for a ‘marriage and family’ mentality. That is, by an overemphasis on the functions of eating and excretion, the child is arrested in the stages of pregenital eroticism, while genital activity is strictly inhibited (prohibition of masturbation). Pregenital fixation and genital inhibition cause a displacement of the sexual interest in the direction of sadism. The sexual curiosity of the child is actively suppressed. This creates a contradiction with the existing living arrangements, the sexual behavior of parents in front of the children and the inevitable sexual milieu in the family. Needless to say, the children observe everything although they get distorted impressions and ideas of what goes on. ”

In The Sexual Revolution, do Wilhelm Reich.

Ou, numa tradução tosca:

“Em uma família conservadora típica, a presença da sexualidade assume uma forma específica, que serve de base para a mentalidade de ‘casamento e família’. Assim, por meio de uma supervalorização das funções de comer e excretar, a criança se encontra prisioneira do erotismo pré-genital, enquanto a atividade genital é totalmente inibida (masturbação proibida). A fixação pré-genital e a inibição genital causam um deslocamento do interesse sexual na direção do sadismo. A curiosidade sexual da criança é suprimida de forma ativa. Isso origina uma contradição com as formas de vida existentes, com o comportamento sexual dos pais na frente das crianças e a inevitável dinâmica sexual na família Nem é preciso dizer que as crianças observam tudo, ainda que tenham impressões e idéias distorcidas do que está acontecendo".


Claro que mesmo o núcleo familiar mais conservador da atualidade não é tão conservador quanto o descrito acima: mas então por que essas afirmações ainda soam tão atuais?

O Filho do Meio

(Tomai todos e comei: este é o meu corpo)





O filho do meio chega no intervalo entre a segurança e a infelicidade: traz em si um pedido de socorro. Ele observa nas atitudes do irmão mais velho, e dos pais, todas as marcas do primeiro conflito, todas as formas desgastadas de acomodação aos papéis, de frustração do amor, de disputa pela atenção da mãe, de culpa... Diferente do irmão mais velho, que deve sempre, de alguma forma, frustrar as expectativas dos pais pra sinalizar a falsidade das relações deles; o irmão do meio reconhece nessa rebeldia do mais velho a identificação com o pai. Com a chegada do irmão mais novo ele se vê na mesma situação difícil de identificar-se com o pai, disputando a atenção da mãe e o controle da casa (como tende a fazer o irmão mais velho). Aqui, porém, ele abre mão dessa luta e se identifica com a mãe, envolvido em aprender o que “tiver de melhor” na experiência dos pais [no caso o interesse por arte], simbolizando a contradição do relacionamento desigual na forma de serenidade e disciplina.

Dada altura do filme o irmão do meio e o mais velho começam a se assediar mutuamente: um com ameaças de violência gratuita, e o outro com uma passividade enervante. Este afeto que dividem um pelo outro não pode chegar à consciência, e acaba por assumir as formas perversas e degradadas apreendidas com os pais (autoritarismo extremo e passividade extrema). O resultado disso são explosões de conflito, que vão minando a relação entre os irmãos na primeira adolescência, até que eles deixem de se gostar. Passam pelas cabeças de ambos pensamentos como: “eu conheço ele melhor do que ele mesmo”; ou “eu sei que ele só pensa nele, que tá escondendo alguma coisa de todos”; ou “ele manipula todo mundo com esses trejeitos, com essa violência”; “a mãe gosta mais dele do que de mim”; “o pai tem orgulho dele e pega no meu pé”; “ele que é forte e consegue se impor diante dos dois”, “um dia ele vai entender e mudar”, etc. Somadas a essas suspeitas quanto às intenções do outro, subsiste a raiva sem razão do tesão inconsciente, que enquanto não pode rir de si mesmo vai consumindo o relacionamento de seus hospedeiros.

O posterior suicídio do irmão “artístico”, que terminou por entrar em conflito com a própria identidade (“... he punched himself in the face when I criticized the way he turned pages... ”), parece um recado dirigido ao pai, cujo assedio controlador deve ter crescido ainda mais com o passar dos anos.

Pra quem se lembra do filme, o pai se queixa, lá pelo final, de nunca ter construído nada na vida “senão os próprios filhos”. Eles estão em meio a uma crise financeira e devem se mudar da bonita casa de subúrbio, provavelmente pra um lugar mais simples. Mas se lembrarmos da cena em que os pais recebem a notícia do suicídio vemos que a mãe está numa casa bem chique, com paredes de vidro; e que o pai está numa plataforma de aviões militares: muito provavelmente uma de suas invenções engrenou, refinando o maquinário de guerra norte americano, que naquele tempo supliciava o Vietnã (o pai deles até parece o Robert McNamara, conhecido gênio dos números e Secretário de Defesa dos Estados Unidos na época. Mas talvez estejamos forçando a nota...). Assim, a riqueza súbita do pai, somada à auto-satisfação decorrente dela, devem tê-lo tornado um sujeito ainda mais duro de se conviver e desafiar.

O Filho Mais Novo

(camaradas: a Revolução [sexual] não será televisionada)





Bom, não temos informação quase nenhuma do filho mais novo, de seus gostos ou conflitos. Especulando podemos dizer que ele chega num momento de intensa ressaca, pego entre a rebeldia sem foco do irmão mais velho, e o bom-mocismo estudioso do irmão do meio: o pai mandão e ausente, e a mãe espiritual e infantilizada, são figuras da ordem que levam existências em separado, apesar de dividirem o mesmo quarto. O par de irmãos mais velhos, que se opõem entre si como reflexos das figuras parentais, só fazem confirmar as falhas no modelo familiar e o fingimento de seus rituais. Infelizmente não temos como saber de que modo ele reagiu (talvez porque o irmão mais velho tenha recordações muito vagas da infância do mais novo, isso acontece...).

Por que o Sean Penn não gostou da fita?

(mas o senhor já não tem aquele quadro pronto em que só está faltando a cara?)



Bom, uma hipótese seria que o filme antecede novas experiências por parte do personagem dele (ou pelo menos uma intuição de liberdade, que coloca os sujeitos em crise...). Se lembrarmos ele aparece pela primeira vez no filme saindo de casa com uma mulher da mesma idade, mas de ar choroso. Depois no trabalho, um colega comenta o próprio divórcio e diz que vai começar a “experimentar”.

Daí o sonho em que ele atravessa um umbral de porta no meio do deserto, atrás de uma mulher (umbral = musculatura anelar do esfíncter e da boca) e se vê com a idade que tinha quando veio à tona a atração latente pelos irmãos. Depois ele se vê numa casa no deserto com a mãe e o irmão do meio: dois amores sublimados cujo sacrifício constituiu sua identidade e identificação com o pai. No fim temos a caminhada na praia repleta de sujeitos daquela época: figuras que formavam as bases de sua personalidade adolescente, e que agora voltam do limbo pra simbolizar o conflito de juventude.

Mas por que você não gostou da fita?

(Lacrimoooooooosa...)



Sem querer se intrometer nos gostos, e respeitando os motivos óbvios (o ritmo lento, a fórmula cinemão americano, os atores, o contexto, a pretensão...), arriscamos dizer, já tomando partido do filme, que a mensagem silenciosa que ele carrega desperta sensações semelhantes no público: mas reações distintas.

Outro dia, assistindo a uma projeção do filme “Le fils”, “O filho”, dos Irmãos Dardenne (genial), no Centro Cultural Vergueiro, vimos muitas pessoas saindo no meio do filme, e tantas outras se queixando no final. A fita tem uma história bastante desconfortável mesmo, em que o instrutor de um centro de reabilitação pra jovens fica obcecado pelo garoto que assassinou seu filho anos antes. Mas mesmo descontando esse tema pesado, o filme é conduzido com cuidado documental, sempre acompanhando a cena por sobre o ombro do protagonista, ou seja, quase a “fofoca perfeita”. Mas então porque as pessoas perdem o interesse?

Talvez as pessoas não percam tanto o interesse quanto lutem por perdê-lo, pra abandonar a visão incômoda. Quem quer que acompanhe uma história por algum tempo estabelece certa relação mínima entre si e os personagens: e se o enredo caminha pra uma revelação formadora e traumática, algumas pessoas tendem a proteger sua atenção através da dispersão, do desconforto físico e da antipatia: como uma criança tentando sacudir um pensamento de desprazer com indisciplina.

Claro que esse argumento pode ser usado pra proteger virtualmente qualquer coisa filmada, mas não o estamos usando de má fé, nem pra proteger um filme fraco. Um cineasta que usa e abusa desse desconforto da associação de idéias, pregando peças na atenção corriqueira com armadilhas em todos os níveis, é o Godard dos filmes recentes.


Mas por que você gostou da fita?

(...brother... [other]... mother...)




Sem querer se intrometer nos gostos, e respeitando os motivos óbvios (o planetário-útero com orquestra, os dinossauros salvos da “morte incestuosa” por graça divina, a família de gente bonita, a fotografia psicotrópica, o sacrifício sincero do suicídio...), arriscamos dizer, já tomando partido do filme, que a mensagem silenciosa que ele carrega desperta sensações semelhantes no público: mas reações distintas.

E no que se refere a essa tal mensagem silenciosa, ela é quase toda feita de frustrações: quando temos que vestir a carapaça de um dos personagens, é pra perceber que eles estão presos em conflitos cíclicos, que acompanhamos nas relações do irmão mais velhos, sempre tendendo ao desgaste e ao rompimento com o outro. Não é preciso dizer que a supressão desses afetos familiares é o cimento do pensamento conservador, e a fornalha que impulsiona o pensamento místico. Na falta de ambos, podemos dizer que o filme desperta certa atração religiosa mesmo em quem não tem muita religião. Ele acaba sendo um programão pra pessoas maduras “que já viram muito na vida e querem sossegar”, que sabem “que o amor se faz de sacrifício e trabalho”, ou que sonham com esse futuro de maturidade e paz, que deve ser a velhice e a convicção [fé] inabalável dos mais velhos.

Diz o Slavoj Zizek em algum lugar que a fé funciona da seguinte forma: é preciso que haja alguém que creia mais do que todo mundo, ou pelo menos mais do que eu, pra dar suporte à minha crença, que depende desse sujeito (não precisa ser uma pessoa viva). Ele também diz que, no que se refere à sexualidade, é preciso que haja alguém de quem proteger a ‘verdade’ do nosso tesão. Mesmo os maiores libertinos, ele diz, envolvidos em orgias e atividades sexuais de todo tipo, dizem: “mas minhas crianças não podem saber jamais, eu não ia suportar”, ou “se meus pais souberem eu me mato”, ou “minha mãe não vai agüentar o tranco”, e etc. Logo o filme trabalha nesse sentido, em que os personagens subentendem coisas a respeito um dos outros, e se surpreendem ao saber até que ponto eles são capazes de levar suas convicções.


A única conclusão é morrer

(mas tesouro por que você se prestou a isso? o que você ganhou com tudo isso?)




É isso: ancorado numa leitura psicanalítica o filme de aparência super-realista ganha elementos que reforçam ainda mais sua “fotografia impecável”, tornando-o insuportável ou maravilhoso.

Segue abaixo uma primeira leitura nossa, feita no calor da primeira impressão, sendo essa leitura acima resultado de uma terceira ida ao cinema. É curioso notar o contraste entre as duas: filme bom [ou chato] é assim: parece que não tem fim!

Até!


(Machadão: esse mulato moderno e triste...)

http://pt.wikisource.org/wiki/Pai_contra_m%C3%A3e


O A Árvore da Vida do Terrence Malick é bem bacana: o pessoal sai da sala todo espiritual, com saudade dos pais, achando que viram uma coisa maior do que viram: por isso o filme é bom.

Ele emprega todos os recursos narrativos à disposição dos estúdios endinheirados e faz um filme-foto, que estrangula toda banalidade da vida e nos enfia luz goela abaixo (e por outros orifícios também). As pessoas ficam com os olhos e a boca cheios d'água: é o tesão fetichizante de uma família no microscópio.

Mas quem está sonhando isso? Bom, o filme gira em torno das contradições que assombram o filho mais velho, e da atração que ele sente pelos outros membros da família (curso normal do desenvolvimento, etc...). Pra que essa idéia "absurda" do incesto não alcance a consciência do narrador, as "lentes" da narrativa dão um giro na história do tempo (que lembra mais uma volta ao útero), terminando no suicídio do irmão do meio, o mais "artístico", cujo gesto é interpretado como uma mensagem pelo filho mais velho. Daí ele fazer essa volta toda e nos deslumbrar com uma mascarada de "sentido" ou "divina eternidade".

A partir daí as figuras masculinas se desenrolam como marionetes, fazendo tipos uns para os outros em torno do pai ausente e auto-afirmativo e da mãe subjugada. Depois os irmãos se afastam entre si: o mais velho reclamando independência, sendo violento e dominador, testando a passividade dos outros dois pra que não se tornem "como a mãe"...

No caso o filho mais velho é o Sean Penn: um tipo de arquiteto futurista avatarizado. E aqui a virada histórica: os dois filmes anteriores do diretor tratam da descoberta da América, e das batalhas dos americanos contra os japoneses no Pacífico, durante a Segunda Guerra. Assim esses dois momentos: a conquista da América e a Segunda Guerra Mundial, foram exemplos de grandes crimes coletivos, que aparecem estetizados pelos recursos narrativos e pelo enfoque. Isso apesar de terem desencadeado grandes mortandades e mudado as feições da vida no planeta (no 'Além da linha vermelha' seguimos um grupo de soldados não tão carniceiros conforme vão tombando. No 'O Novo Mundo', os pioneiros matadores de índios no território americano, que deram início a um genocídio de proporções continentais).

Nesse filme nosso vilão da pós-modernidade é esse Sean Penn viajando nas próprias memórias, mas rodeando as idéias 'desconfortáveis', que têm que ver com o modo de vida que ele leva e com o mundo que ele ajuda a reproduzir. O mundo rico, distanciado do sofrimento e da miséria dos produtores, ele sendo uma versão melhorada do pai inventor, mas fiel a outras coordenadas de egoísmo, alienação, auto-afirmação... Mas o filme fica mais bonito se a pessoa fizer uma leitura bíblica, de "Abuela".




domingo, 6 de março de 2011

Tarantino is a girl





‘À prova de morte’ e o sujeito polimorfo na selva da linguagem

Vol. I


[It’s no longer your film…] 1





+Soon as her frantick eye the lyrist spy'd, 
See, see! the hater of our sex, she cry'd.__ 


++ "O inconsciente masculino possui duas vias de saída para essa ansiedade da castração: preocupação com a reencenação do trauma original (investigando a mulher, desmistificando seu mistério), contrabalançado pela desvalorização, punição ou redenção do objeto culpado (o caminho tipificado pelos temas do filme noir); ou então a completa rejeição da castração pela substituição por um objeto fetiche ou a transformação da própria figura representada em um fetiche, de forma a torná-la tranqüilizadora em vez de perigosa (o que explica a supervalorização, o culto da star feminina)." ____ 


+++ “Não é culpa minha, como se costuma dizer, se a psicanálise questiona no plano teórico o desejo de conhecer, e se, em seu discurso, coloca-se por si mesma num aquém que precede o momento do conhecimento.” ______

diamba...

(((There must be some way out of here)))

A fita de Tarantino começa um close dos pés de Arlene (ou Butterfly) cruzados sobre o painel de um carro em movimento. Eles são observados de um ponto de vista que seria tanto o dela própria quanto o nosso, de espectadores: como se estivéssemos nos colocando nos pés da moça, e vendo o mundo através de seus olhos. Assim, o fetiche confesso do diretor vem em seu socorro para estabelecer uma relação inesperada entre a audiência, a personagem e um terceiro elemento, em si mesmo traumático: o diretor-câmera e seu dublê voyeur em cena: o assassino. Lembremos que nos créditos iniciais o título “original” do filme, Tarantino’s Thunderbolt, foi substituído por Death Proof numa montagem tosca, que nos permite ver como ele se chamava antes. Aqui, a idéia de um raio que se abate sobre alguém com violência vem reelaborada em um “À prova de morte”, ou seja, um evento (traumático) que se repete dentro do tempo indefinidamente, e que carrega em si as marcas de uma separação fundadora: a de gênero.     

Não é preciso dizer que nossa leitura será bastante tendenciosa, e terá sempre como base a construção da identidade para entender a articulação dos elementos em cena: o filme, feito de retalhos de outros filmes, simula uma produção B dos anos 70. Este procedimento vem refletir sobre as personalidades que se nutriram dessas “imagens ideais”, vindas da tradição imediata do cinema comercial. Devemos pensar, sobretudo, na infância e na adolescência, quando os modos desses heróis em cena fundamentam a constituição das máscaras sócias, e sexuais, dos indivíduos expostos à sua influência. 

Supereu - Eu - Id
Groucho - Chico - Harpo
 Jungle Julia – Arlene / Butterfly - Shanna Banana


Três é demais

(((If you cannot bring good news, then don't bring any)))


[I don’t think you would love me if I were poor…
Yes I would, but I’d keep my mouth shut] 2


Quem assistiu ao filme sabe que ele se organiza de forma especular, em que dois grupos de mulheres são atacados pelo mesmo assassino, que utiliza um carro contra as vítimas (aqui só comentaremos os eventos até o primeiro “acidente”, por isso o Vol.1 lá no começo). As personagens principais são Julia, Shanna e Arlene: amigas dos tempos de faculdade. As três estão dentro de um carro e pela conversa descobrimos que estão saindo com outros rapazes, além de esperar a chegada de um diretor de cinema à cidade, com quem Julia tem um caso. Dado momento, Julia e Shanna começam a interrogar Arlene sobre seu encontro noturno com um dos rapazes, Nate. Ela conta às amigas que eles se pegaram por alguns minutos no sofá de seu quarto e então ela pediu que ele saísse, pois não queria transar com um sujeito que acabara de conhecer. 

Aqui gostaríamos de parar um instante e atribuir uma classificação arbitrária as três personagens que, por estarem afetivamente conectadas, ou talvez, por “ocuparem o mesmo veículo”, interagiriam (de forma inconsciente) segundo certas estruturas psíquicas. Tais estruturas foram descritas à exaustão pela psicanálise, e nos serviremos delas como ponto de partida, logo: eu, supereu, id estariam para, respectivamente, Arlene, Julia e Shanna (conferir o documentário "The perverts guide to the cinema", com Slavoj Zizek, em que a mesma relação é sugerida para os Irmãos Marx).

Voltando à história contada por Arlene, percebemos que algumas informações podem estar faltando: mais tarde ficará claro que a relação dela com Nate não funciona, e que ambos se esforçam em representar algum afeto para o restante do grupo, apesar do desinteresse mútuo. Nate e Arlene estariam no lugar do eu (também Shanna e Julia têm seus equivalentes masculinos, como veremos adiante, mas a relação entre eles é ainda mais distanciada). Logo, precisam lidar com as exigências vindas das duas outras esferas (id-supereu), ainda que isso signifique trair a própria vontade.
 
Partindo dessa leitura as histórias contadas por Shanna e Julia assumem outra perspectiva: o diretor de cinema, que é a paixão de Julia (Chris Simonson) está no lugar ideal como um companheiro que significaria pra ela segurança financeira e reconhecimento social (o amigo Jesse Letterman, o "amor por correspondência", está reservado para o eu-Arlene). No outro extremo temos a história de Shanna e seu pai, descrito como um texano conservador e sexista, que não quer que ninguém (ninguém mais?) transe com sua filha na casa do lago que lhe pertence. Aqui seria interessante apontar a ligação entre o diretor, Nate e o pai de Shanna: tipos que se “concentram” na figura do assassino-voyeur-diretor, que já as está seguindo. 

O carro delas, então, desaparece, literalmente, numa curva do caminho, por conta de um "erro" de edição. No instante seguinte ele é substituído pelo carro do assassino: aqui o conceito de “mediador evanescente” (vanishing mediator - http://en.wikipedia.org/wiki/Vanishing_mediator) talvez nos revele a dialética que se opera entre os elementos masculinos e femininos em cena: quando o conflito de interesses, tese x antítese, atinge certa “massa crítica”, o momento que antecede a substituição de ambos os conceitos pela síntese necessita de um mediador evanescente, que ao final deve desaparecer. “A vanishing mediator is produced by an assymetry of content and form”, nos diz Zizek. Assim, os corpos masculinos e femininos são substituídos por dois carros, ou seja, formas idênticas que forçam uma crise sobre os conteúdos distintos, as identidades sexuais:

http://www.lacan.com/zizekchro1.htm

“Zizek sees in this process (do mediador evanescente) evidence of Hegel's "negation of the negation", the third moment of the dialectic. The first negation is the mutation of the content within and in the name of the old form. The second negation is the obsolescence of the form itself. In this way, something becomes the opposite of itself, paradoxically, by seeming to strengthen itself .

(“…content changes within the parameters of an existing form, until the logic of that content works its way out to the latter and throws off its husk, revealing a new form.”).

 In the case of Protestantism, the universalization of religious attitudes ultimately led to its being sidelined as a matter of private contemplation. Which is to say that Protestantism, as a negation of feudalism, was itself negated by capitalism.” 






Güero’s
 ou as loiras preferem as loiras


[I hate you. I hate us both.] 1

(((Out of six million sperm cells I came in first and won a warm moving body)))


No início da seqüência seguinte, no bar mexicano, temos outra falha de edição que vem nos recordar que estaríamos assistindo a um filme recuperado. Este recurso do diretor, aliás, pode ser observado ao longo de toda a fita, em que as tomadas selecionadas foram necessariamente as melhores, sem se preocupar em demasia com questões de continuidade (é curioso notar como o cabelo e a maquiagem de Arlene mudam ao longo dessa cena). Existe uma relação entre essa liberdade por parte do diretor (que joga limpo conosco, deixando à vista seus recursos expressivos) e Marcy, a amiga de Julia que se aproxima das três por um instante. 

Essa moça tem os dizeres "L'ultimo buscadero" em sua camiseta: se trata do nome de um western com Steve McQueen, que representa um cowboy atravessando uma crise de identidade (atrás de Arlene vemos o cartaz do filme "Las tres Elenas", um clássico mexicano que conta a história de um tipo que vive com sua mãe, filha e sogra, as três com o nome 'Elena'. Mãe e filha acabam por se apaixonar pelo mesmo rapaz, que também vive na casa). Quando Marcy (a amiga de passagem) começa a interpretar trejeitos masculinos para revelar à Arlene a obrigação que as amigas lhe impuseram (dançar no colo de um desconhecido), percebemos aquilo que está na base das imposições de grupo e dos rituais de aceitação. Essas moças seguras de si, bancando as supersexy, não são diferentes dos tipos violentos de outros filmes de Tarantino, que devem provar seu valor diante dos pares não fugindo aos desafios que se apresentam: é necessário manter o sangue frio, a acuidade expressiva e a disposição para agir. Aqui o dito “não se nasce mulher: torna-se”, revela sua dimensão total graças à interpretação da atriz: os modos masculinos e femininos são aprendidos por imitação, e não por alguma tendência natural, ou coisa que o valha. Assim, os sujeitos mais vis e truculentos, e as mulheres mais delicadas e espirituais em nossa sociedade, estão intimamente ligados pelo uso consciente que fazem desse aprendizado dos modos. 

A figura ideal e esperada (o diretor), e a ameaça secreta (o assassino), são opostos da mesma moeda, funcionando como a disrupção que deve liberar a personagens e testá-las em sua fibra. Não por acaso ele se sente atraído pelas mais independentes, que sabem que postura e segurança são formas de repelir o abuso e se colocar pela igualdade. 

Alcohol is just a lubricant” 
ou ninguém faz amigos bebendo leite.


[I kill YOU for money!...no, alright, you’re my friend: I kill you for nothing] 2

(((Waiting for lively moments to come to them like victims)))

Já no segundo bar as moças se encontram com seus equivalentes masculinos: os rapazes são apenas acompanhantes, e devem ser dispensados com a chegada do diretor. Ao mesmo tempo Julia também espera por Lanna Frank, uma amiga que vem pra lhes trazer fumo e que sinaliza, com seus modos, uma liberdade não tão distante da que as três gozam. Antes de Lanna Frank chegar, porém, os três casais bebem juntos por algum tempo: a articulação entre eles e os demais presentes no bar, além das inúmeras mensagens espalhadas pelo cenário, nos interessam. Por ignorância deixaremos passar a maior parte dos sinais, infelizmente. Outros tantos parecem algum tipo de piada interna, ou mensagens pessoais voltadas para Sofia Coppola, a quem a fita é dedicada (o personagem do último filme dela, Somewhere, passa os primeiros minutos da história com uma camiseta da Associação dos Dublês, ou algo assim). A dedicatória (não sei se é uma dedicatória secreta, as indicações estão no próprio filme) não vem por acaso: a fita nos parece um esforço de desvendar o fracasso de um relacionamento marcado por uma grande admiração mútua. O conflito pessoal aqui se universaliza ao focar a relação homem-mulher, e necessita, por fidelidade investigativa, apresentar o seu revés perverso e patético. 

Mas pensemos as personagens uma a uma:




[Despues de conocerte, tengo que mirar al suelo. Tengo que mirar la mierda de los perros para no mancharme las manos. !Los charcos! Las pozas…] 4

(((Your sons and your daughters /are beyond your command)))

Pam 
“I'm built like a girl, not a black man...”


Pam não faz parte do grupo dos seis amigos: a moça foi abandonada no bar pelo namorado em plena chuva. A cena foi vista apenas por Nate e Arlene, que ao tentar contá-la às amigas acaba reprimida por Julia. A verdade é que Pam e Julia foram inimigas de escola, e se opõem como figuras modelares distintas. No caso de Pam, porém, ela aparece como um exemplo negativo, na forma de uma exageração dos modos femininos: daí que ela se liga ao assassino, o dublê Mike, apesar da grosseria do outro, apenas para não ficar sozinha. Passividade e infantilidade se combinam nela para suportar o desrespeito do parceiro. Na cena em que Pam se queixa ao dublê da truculência de Julia, ela aparece em um plano que deixa seu rosto coberto pelos cabelos, como se usasse um véu (burca?). Negando-se a enxergar os sinais de perigo que vêm do outro, ela se deixa conduzir por uma teia de “desconhecimentos”, que culminarão com a cena mais desconfortável do filme, em que ela é assassinada. Aqui o carro (ela é conduzida pelo assassino dentro de uma caixa de vidro, em um carro em alta velocidade) nos parece o modelo de um casamento desgastado. Não por acaso é como nos filmes de terror dos anos 70, os mesmos anos que viram certa emancipação da mulher por meio da popularização do divórcio. Esses “golpes” dados na moça são um exemplo de violência doméstica, forma de violência mais comum contra as mulheres. 

Vejamos agora os rapazes que acompanham as heroínas: 


Nate 
 (((I jump back, I wanna kiss myself)))

Ele é o equivalente masculino de Arlene: usando a mesma fórmula psicanalítica aplicada às garotas, Nate estaria no lugar do eu. Dov, o grandão usando a camiseta em que se vê um crânio e a palavra "morto", seria o supereu; enquanto Omar, o caladão com uniforme de mecânico (muito parecido com o uniforme que veremos no dono do Dodge branco, na segunda parte do filme) seria o id. Voltando ao Nate, ele é o sujeito que participa da história contada por Arlene dentro do carro: o que ele próprio contou aos amigos não deve ser diferente, também uma história plausível.

 A verdade é que as coisas não correm bem no primeiro encontro dos dois, muito provavelmente por insegurança (notemos que os dois personagens são ambíguos, alternando trejeitos masculinos e femininos). A cena do diálogo entre os dois esclarece alguns pontos: primeiro Arlene está na varanda, observando o carro do assassino, e quando o amigo lhe toca o ombro ela se assusta. A tensão (atração) que vem do veículo ameaçador (fálico?) se dissipa com um grito e alguns xingamentos. Nate diz que não teve intenção de assustá-la, que apenas deu sorte. Em seguida propõem a moça que os dois dêem uns amassos no carro dele, ao que ela diz sim, apesar de não se sentir especialmente atraída por ele. Enquanto espera pela resposta o rapaz não tenta convencê-la com gestos de afeição, e move a cabeça como um pássaro: sua excitação, aumentada pela hesitação dela (ou por estimulação artificial?) transparece na sua figura como a urgência de uma ereção. Ambos vão para o carro do rapaz, que promete que ela “não vai ficar molhada”, por causa da chuva. A piada pronta sobre a excitação da moça vem pra nos indicar os motivos que estão em jogo. 

Dov e Omar
 (((With a tongue like a cow / She could make you go wow)))

O grandalhão supereu, com a camiseta escrito “morto”, formaria casal com Shanna (aqui temos um esquema cruzado em que Shanna como id se ligaria ao supereu Dov. O mesmo vale para Julia e Omar). A verdade é que tirando a mascarada do relacionamento Nate-Arlene, os outros dois casais estão ainda mais distantes entre si. Vejamos o que acontece no diálogo entre Dov e Omar: nele a postura de Dov é agressiva, e se refere às moças como um inimigo a ser derrotado. O discurso contrasta com a atitude passiva e subserviente que eles demonstram diante delas (os dois estão no balcão, comprando drinks elaborados pras duas). Ao lado deles está o assassino dublê Mike e Dov faz troça de sua aparência, a exemplo do que Julia faz com Pam na cena anterior. Assim, os seis personagens se opõem ao “anti-exemplo” representado por Pam e o Dublê Mike através de suas figuras ideais (Dov e Julia). 







Las meninas
 “If they do something you do something”  
TeXXas

[This is the girl. This-is-the-girl] 1

(((Trash me for my life / beyond this world that we despise)))

Julia 
 (((Filho meu, não inveje o homem violento, nem siga nenhum de seus caminhos)))

A personagem de Julia, como sugerimos, representaria o ideal: ela é caracterizada como uma mulher objetiva, segura e bem sucedida, além de muito inteligente. Como foi dito ela tem uma atração platônica pelo diretor de cinema e a expectativa de vê-lo parece tê-la tirado dos eixos, ainda que ela se esforce por esconder dos que a rodeiam. Se lembrarmos de sua primeira aparição ela está fumando maconha sozinha em seu quarto. Logo depois, a primeira coisa que faz dentro do carro é perguntar quem tem fumo, e perder a paciência ao ouvir resposta negativa: ela parece estar numa fase de uso mais intenso, e prefere manter suas reservas a dividir com as amigas. O recurso a Lanna Frank, ao invés dos rapazes, para conseguir um baseado é outro gesto de independência que as garotas performam durante o filme. Se pensarmos que o diretor de cinema e o pai obsceno de Shanna estão ligados entre si (a ponte seria o dublê Mike, o assassino, o voyeur, o diretor, o ideal paterno distanciado), Lanna Frank apareceria em oposição a essas figuras, que já não teriam poder para seduzi-la ou ameaçá-la. 

No restaurante mexicano, o desafio que Julia impõe a Arlene é explicado pelos versos que ela escolheu (poema de Robert Frost, Stopping By Woods on a Snowy Evening): o desejo (the woods) e a identidade (the promises) devem seguir lado a lado em meio as aventuras sentimentais. O caminho, que não pode ser abandonado, deve ser encarado com desembaraço e espírito independente, de modo a se colocar à altura dos desafios que vão surgindo. 

A imagem de Julia dançando no bar é curiosa: sobre a jukebox atrás dela vemos 4 letras X em neon (cromossomos sexuais XX?), na mão direita Julia tem um cigarro, na esquerda um copo de cerveja, mais atrás num quadro negro na parede lê-se os dizeres  “obrigado por nada” : é como uma vitrine em que se encontram expostos objetos fetichizados pelo olhar, incluindo aí a moça (a frustração amorosa funcionaria como um motor para o consumo obsessivo desse “Outro”, reduzido a fontes comerciáveis de gratificação oral). Na seqüência Julia, Arlene e Nate voltam para a mesa: agora o grupo está completo com três casais. É interessante notar que Julia e Arlene se sentam à cabeceira da mesa, com as pernas voltadas para a passagem, numa atitude dominante que visa proteger o território ocupado pelo grupo. 

Julia faz uma ligação para Lanna Frank e aproveita pra mandar uma mensagem para o diretor: aqui vemos que o esmalte das unhas está descascando, possível sinal de instabilidade. Quando o diretor responde a mensagem, vemos ao fundo o sorriso cínico de Omar (o id). Então a conversa entre Dov e Shanna nos dá outra indicação, quando ele se confunde com o nome dela. O que se percebe é que a idealização é de mão única, e o diretor não tem a mesma intenção (ou qualquer intenção) de revê-la: ela é um nome numa lista de celular, passível de ser confundida, ou substituída, por outra pessoa. 

Mais adiante, quando estão todos fumando na varanda, Julia é abordada pelo dublê Mike, que faz o tipo bêbado entrão pra se aproximar. Antes da conversa entre os dois, porém, nós temos um close das pernas de Julia molhada pela chuva: o recorte fetichizado de uma parte do corpo, tornado objeto pelo olhar. Na cena do acidente o mesmo recorte se revelará em sua feição perversa, quando a perna é amputada. 




Shanna 
 (((Turn off the sentences / and turn on the senses)))

A personagem de Shanna estaria em relação com o real, o corpo em si mesmo (o id? Harpo?). Retomando a cena da conversa no carro, lembremos do paralelo traçado entre o diretor de cinema, paixão de Julia, e o pai chauvinista de Shanna, dono da casa no lago (é curioso como o sotaque sulista da moça fica mais carregado quando ela fala do pai). Das três Shanna é a que parece mais estável: ela não está envolvida num caso de fachada como Arlene, nem apaixonada por um sujeito distante como Julia. Sua relação com as figuras masculinas negativas (diretor de cinema, pai dominador, assassino voyeur) se dá por intermédio do próprio pai, cujos modos francos têm um efeito esclarecedor, para ela, da natureza das relações. Tanto é assim que ela é a primeira a insistir em que as outras duas não devem passar aquela noite com ninguém, pra gozar das vantagens e da proteção da casa do lago. Shanna é a que parece mais sociável com os rapazes e seus trejeitos são um tanto infantis, andróginos (ainda que Arlene e Julia também oscilem no quesito androginia). Na sua última aparição no bar, quando ela chega junto de Lanna Frank pra fumar, a cena se desenrola em dois planos, pois ao fundo estão os três rapazes: atrás de Shanna está o grandalhão Dov, com a cabeça cortada pelo enquadramento e a inscrição “morto” no peito. Atrás de Lanna Frank vemos Nate sentado com o rosto na linha da cintura de Omar, que está de pé. Como Nate está tomando uma cerveja tem-se a impressão de uma felação entre os dois.  Desse modo temos, no primeiro plano, o gesto “rebelde” de uso de entorpecente, enquanto ao fundo os elementos masculinos encenam outra forma de liberação: como o supereu masculino aparece devidamente neutralizado, decapitado pelo enquadramento, os outros dois elementos se encontram livres de sua influência reguladora, encenando a vontade reprimida. Percebam que com o supereu Lanna Frank acontece o contrário: sua presença deve ser fortalecida para liberar as moças da presença reguladora de agentes externos a elas (pai-dublê-diretor). Não por acaso é Lanna Frank quem guia o carro no momento do acidente, e é a única que não termina “fragmentada” como as outras três. 

Arlene 
(((Our Father would not like the way that you act / and you must realize the danger)))

[La gente como tú y como yo no nacimos para matar. Podemos herir a los demás. Diria incluso que poseemos un don especial para eso.] 4

Em seu “Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” Freud isolou, entre os instintos componentes da sexualidade, a escopofilia, que estaria ligada ao prazer de tomar outras pessoas como objeto, sujeitando-as ao olhar. Como se trata de uma fase do desenvolvimento psíquico, as crianças apresentam essa escopofilia por meio de uma curiosidade com relação aos genitais alheios e suas funções excretoras.            

Na seqüência inicial do filme temos vários recortes sensuais do corpo de Julia, culminando com a corrida desesperada de Arlene, que está apertada pra mijar, e nos é mostrada apenas da cintura pra baixo: a atração exercida pelos corpos fragmentados recompensa essa escopofilia, e atinge seu ápice ao revelar uma necessidade interna  à dona dos quadris que ocupam a tela. Assim, o diretor se utiliza dessa relação vouyeurística para com as mulheres em cena  e descarrega a negatividade de seu lugar controlador na figura do assassino. Ao mesmo tempo a construção das personagens e os elementos em cena (que vão de um poster gigante de Brigitte Bardot a cartazes de filmes antigos, outdoors, camisetas, letreiros em neon, canções. Aliás, numa das paredes vemos o cartaz do filme Soldier Blue, de Ralph Nelson, que pode ser visto no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=F_URVOQGvb0 . O filme tem uma levada bem engajada ao denunciar o chauvinismo e a opressão por meio de uma persona feminina moderna, “artificialmente” introduzida num meio repressor), vão na direção oposta, revelando mecanismos de opressão que pesam sobre a figura feminina na história do cinema. E aqui citamos o ensaio de Laura Mulvey, "Prazer visual e cinema narrativo", que nos tem servido de guia e modelo:"Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino... a presença da mulher...num filme narrativo comum... tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica... Segundo Budd Boetticher: 'O que importa é o que a heroína provoca,...o amor ou o medo que desperta no herói.. em si mesma a mulher não tem a menor importância'".

Tarantino neste filme não vai à contramão dessas formas masculinizantes do cinema comercial, mas subverte o uso dessas fórmulas ao utilizá-las de modo consciente, em chave de denúncia. Mas voltemos a Arlene:
Aqui gostaríamos de fazer algumas suposições, para preencher as lacunas dos eventos que não nos são revelados explicitamente. 

A história detalhada que Arlene conta no carro , como já dissemos, não nos parece inteiramente verdadeira. Vejamos algumas hipóteses do que poderia ter acontecido de fato: Nate e Arlene acabam de se conhecer, ela tem uma atitude mais robusta e decidida; ele parece o contrário, um tipo inseguro, preocupado com a aparência. É possível que sozinhos no quarto dela a conexão entre os dois não se tenha estabelecido. Arriscaríamos dizer que por conta de seus modos mutuamente excludentes o encontro resultou numa brochada (dele?dela?ambos?), que deve ser mascarada por Arlene no relato. Mais adiante, na cena em que Arlene está dançando com Julia e Nate, o rapaz está colado atrás dela. É o único momento de proximidade física entre os dois que, em comparação a Julia, dançam de um modo artificial, sem entrega. E aqui levantamos uma hipótese, que não pode ser comprovada: e se Nate tomou algum tipo de estimulante (viagra) e estava "mostrando" a Arlene, durante a dança, que aquela noite poderia ser diferente? A história funciona bem sem essa hipótese, mas ela também explicaria a insistência de Nate em dar uma escapada com a moça durante a chuva. Seguindo a lógica dos ideais Julia e Dov, o parceiro(a) deve ser entendido como uma espécie de adversário, para que os interesses dele(a) não se sobreponham aos nossos. Também Arlene quer passar a impressão de ser segura e sexuada, daí que ela aceita o convite para ir ao carro, escapada que dura o tempo de...uma felação? Algumas carícias? Outra brochada (se com viagra, brochada dela: "you won't get wet")? Nesse meio tempo eles testemunham a separação de um casal e Pam sendo deixada à deriva no bar. Como já foi dito ela estaria para uma espécie de feminino negativo, e por estar numa relação de dependência com o ex-namorado termina abandonada ali sem recurso. 
 
  De volta para o bar Arlene finalmente conhece o dono do carro que as vem seguindo, pois ele está sentado no balcão: o dublê Mike. Ele entra no bar vestindo um casaco prateado com os dizeres "ICYHOT" nas costas (no ombro lê-se: husk=casca). A apresentação adolescente de si serve para desviar a atenção das moças, ao mesmo tempo em que revela alguns mecanismos de auto-afirmação masculinos, associados à figura do herói hollywoodiano valentão e infantilizado. Ao lado dele o supereu Dov faz piada do dublê (do mesmo modo que Julia reprimiu a história de Pam). Aliás, Julia chama Pam de "hippie suja": não seria um modo indireto de ofender Arlene? Ou de protegê-la da imagem de si mesma, pois não é ela quem usa um cabelo quase sem corte, chinelo de dedo, uma camiseta com um desenho da ponte de São Francisco? 

Assim, o segredo de Nate e Arlene (a ida ao carro) revela o anti-casal Pam-dublê Mike. E se repararmos bem, o dublê Mike, por debaixo da jaqueta, está vestido de forma idêntica à de Nate: camiseta preta, relógio, pulseira, jeans, o cabelo pra trás. Logo, a atração dela pelo dublê Mike (ela tenta chamar a atenção dele dançando a música de Joe Tex, conferir letra ) a coloca em relação direta com Pam: o casal fracassado dublê-Pam se torna uma projeção do casal fake Arlene-Nate. 
Afinal, por que Arlene se sentiria atraída pelo sujeito mais patético do bar se não pelo fato de que ele as vem seguindo por todo o caminho? E mesmo a insistência de Pam em estabelecer conversa com o dublê, perguntando sobre sua carreira (de diretor de cinema?), não seria uma forma de valorizar para si aquele sujeito estranho, disperso, rude e infantil? 

  Ao final, quando Arlene é abordada pelo dublê Mike com o poema é na verdade a imagem de um Nate idealizado que a move: atraído, atraente e viril. Que demonstra um desejo maciço (ereção) e assutador por ela ("it's your car..."), como um segredo escondido na carapaça de um loser decadente, maduro, e que só ela conhece “de verdade”.  A associação com a figura paterna aqui fica evidente ( daddy,,, he's totally harmless...), e se inverte para permitir a Arlene gozar de uma excitação "primitiva".

  Quando ela recusa fazer a dança mesmo sem querer recusar (intervenção de Julia), o dublê saca um livro vermelho do bolso e ameaça registrá-la ali como uma covarde. O gesto tem um efeito estranho sobre ela, que muda de idéia imediatamente.
Diz-se que no sadismo o prazer está ligado à determinação da culpa, e com isso pode se conectar à idéia de um pai punitivo (ou protetor), e ao complexo de castração. Desse modo ela se deixa "obrigar", de forma masoquista, por essa figura sádica que detém o perdão e a punição. Ela o faz em atenção não apenas ao próprio desejo (e ao excesso que se pode conseguir por meio da submissão...), mas também à comunidade de mulheres que a rodeia, cuja aprovação lhe permite o gozo.

  A cena da dança no colo do dublê Mike é instrutiva: todas as que estão assistindo são do sexo feminino, exceto pelo próprio dublê e um atendente que, salvo engano nosso, dá-se a entender que é gay. Logo, tendo a aprovação da comunidade de mulheres e a presença solitária de seu escolhido, ela pode se entregar a um exibicionismo ativo. Esse reconhecer-se como objeto de atração do outro está ligado à (ou se inaugura na) relação ambígua que a criança estabelece com a figura paterna durante os primeiros estágios de desenvolvimento e a formação do supereu. A paixão pelo pai, que também deve ser simbolizada, passa no caso feminino a um retorno amargurado à figura da mãe, com quem é “forçada” a identificar-se.  Já da perspectiva do dublê Mike a cena da dança tem outros aspectos, que retomaremos adiante. 

  Depois do corte brusco no final da apresentação de Arlene temos um momento bem deprimente, que sublinha a frustração nas ligações estabelecidas entre as personagens: Arlene e Julia estão bêbadas, e seus rostos são apresentados com feiúra proposital. De saída elas começam a caçoar de Pam por acompanhar o patético dublê (ainda que as duas tenham sido rejeitadas por seus ideais na mesma noite). Pam responde que não transaria com um sujeito com idade pra ser seu pai, ainda que continue a seduzi-lo. Aqui de novo a aprovação do meio interfere para mascarar uma verdade: a disposição de Pam (e de Arlene) para transar com um sujeito que, apesar da esquisitice, apresenta um afeto palpável por ela. 





  Os eventos que se seguem representam a tristeza do desinteresse, daquele que, depois de alcançado o gozo (um diretor de cinema famoso seduzindo jovens locais? Um sujeito endinheirado que gosta de ver as amiguinhas da filha de biquini? Um assassino de mulheres que mata as que ele considera fortes e libertárias?), por meio de influência e subterfúgios (ou sorte), depois não se sente inclinado a engajar em um relacionamento tradicional. Ainda que em sua sedução ele leve as coisas até o limite, colocando a si próprio na zona de impacto; o lugar em que ele se encontra é protegido na medida em que fetichiza seu objeto de desejo, afastando-o de seu pensamento. O "auto-sacrifício" parcial desse modelo masculino (duck fucker, a voz do falo), entra na conta do suicídio lento do álcool e do tabaco, que preserva a virilidade.

http://www.youtube.com/watch?v=utjkEZAY-MQ

  Pensemos o interior do carro das moças pouco antes do ataque: Arlene está sentada no banco de trás: é a única que usa o cinto de segurança (em sintonia com o dublê que vem aí). Quando o carro do assassino surge do nada a seqüência se fragmenta pra dar conta do que aconteceu com elas: Lanna Frank fica constrangida entre o volante e o acento, enquanto as outras três têm suas partes erotizadas durante o filme transformadas em objeto por meio da mutilação. 





Dublê Mike
((( What a hard man fe dead)))

[Your mother sucks cocks in hell, Karras!] 3

+++“Isso quer dizer que o significante gera um mundo, o mundo do sujeito falante, cuja característica essencial é que nele é possível enganar.”______

Até agora estabelecemos relações entre o dublê Mike, Nate e seus dois amigos, o diretor amante de Julia, o próprio diretor Tarantino e, no limite, o pai obsceno de Shanna. O evento desencadeador da história, segundo nossas especulações, seria a relação frustrada entre Nate e Arlene. Agora pouco descrevemos quais seriam os elementos em jogo na articulação do desejo de Arlene: mas e quanto ao dublê e todos esses fantasmas que ele representa? Por que sua perversão é um compacto da experiência de todos os elementos masculinos referidos acima? 

  Vamos começar por Nate e desde já ser bastante cruéis com ele: digamos que foi por conta de uma ereção frustrada que a relação não pôde acontecer. Segundo a psicanálise, os eventos de impotência psíquica atingem, usualmente, sujeitos que apresentam libido excessiva, e precisam se desviar, a todo custo, de objetos incestuosos. Assim, a atração despertada pelo(a) parceiro(a) deve superar essa auto-censura para permitir o gozo. Porém, às vezes, por motivos que vão do nervosismo a um excesso de identificação com o objeto, o sujeito se vê aprisionado pela censura. A situação constrangedora poderia ser resolver com um pouco de paciência das partes, mas aqui, como a história nos é contada de forma parcial, não temos como saber o que realmente aconteceu. O que se pode dizer é que se trataria de uma situação traumática para ambos, não apenas pelo abalo à vaidade dos envolvidos, mas também pelo medo de ser descobertos, o que os uniria numa espécie de “marginalidade” pudica. 

  Nos tempos do gozo obrigatório o excesso de pudor se transforma em ato obsceno, e os personagens refletem essa crise: o pudor visto como obscenidade se liga a fases primitivas da constituição do eu, pois esse pudor se originaria da repressão das pulsões incestuosas. O esforço do filme nessa primeira parte é a acessar esses conteúdos reprimidos na psiquê de ambos os sexos: mas vejamos de que forma o dublê Mike reflete essa regressão forçada pelo trauma-brochada:

[La cocaína seca las lágrimas] 4

(((I live across the channel with a telescope)))
 
  O dublê Mike está seguindo as moças há algum tempo, e já tem fotos das três. Aliás, porque dublê? Digamos que o dublê é aquele que substitui o eu ideal dos artistas na tela, e arca com as conseqüências reais dos acontecimentos no lugar deles. No limite somos todos dublês de identidades ideais acalentadas por nós mesmos. O assassino, porém, se utiliza de sua condição (de diretor prestigiado? de homem?) para se aventurar de forma inconseqüente e “auto-destrutiva” com mulheres desavisadas.

  O dublê M. espera até o último minuto para pedir à Arlene que dance pra ele, e faz uma descrição acurada dos sentimentos da moça. A cicatriz no rosto dele (sinal do trauma formador da identidade masculina, o complexo de castração) não faz medo na moça, mas o carro sim (aqui como representação do corpo do anti-herói, e de seu conteúdo-interior-identidade cindida ou mutilada). Ao dizer que o carro pertence à sua mãe, o assassino-diretor faz outra referência ao complexo de Édipo e sua função (de) formadora das relações homem-mulher.

[I know what they have for boys like you in Mexico] 5

(((I stand up to face him / because i'm tired of this lie life)))

  Mas e a cena da dança da perspectiva do dublê Mike? Comecemos pela música, ainda que tenha sido escolhida por Arlene : Down in México. A letra conta a história de um sujeito que vai até o México (saindo dos EUA) em busca de diversão. O texto da letra é ambigüo, e se alonga na descrição de um pianista de bigode e bandana na cabeça, para em seguida descrever uma mulher fantástica (alegórica), vestida e ornada com objetos esdrúxulos. Não seria essa sereia dançante uma forma super objetificada, fetichizada, irreal de mulher? O conteúdo reprimido da sexualidade: a ser adquirido nos pontos de venda pelas periferias das cidades e do mundo... A cena:

  O dublê está sentado no centro do bar, e Arlene começa a dançar diante do letreiro em neon XXXX sobre o jukebox, cobrindo ora o par esquerdo, ora o par direito de XX. Notemos que muitas das tomadas de Arlene são feitas pelas costas: o cabelo dela tem um corte retrô e irregular, a beleza de seu corpo não é exatamente a do padrão hollywoodiano, e seu jeito e modo de vestir têm uma graça corriqueira. De modo que, quando olhada desse ângulo, ela parece uma mulher de outra época, de gerações atrás, talvez os mesmos anos 70. Aqui o diretor parece brincar com a própria memória afetiva, reproduzindo um tipo de vouyeurismo infantil voltado para figuras femininas de sua infância.

  Logo, o ambiente para o dublê também é seguro, rodeado de mulheres que o aprovam, com seu revés homoerótico a devida distância (o outro sujeito que assiste à dança). Ele está vestindo sua jacketa-casca novamente e observa a performance de Arlene, que é bastante inspirada, e se excita com ela (a julgar pela animação da moça).

  A conclusão com o acidente forçado, na ida das garotas à casa do lago, não deve nos enganar com seu caráter definitivo. A reencenação do trauma nos mostra, por meio da psicopatia do personagem, um desequilíbrio profundo na relação entre os gêneros, e na perspectiva que têm ambos da vida amorosa: num caso heterossexual masculino “ao extremo”, por exemplo, a ânsia por parceiras sempre renovadas tem um quê de corrida contra o tempo, e de preservação da própria identidade. Por trás dessa ansiedade de troca (troca?) se encontram as figuras parentais do sujeito, que se sente ameaçado ora pelas reminiscências de sua atração pela mãe, ora pela castração que reprime essa tendência, encarnada na autoridade do pai (que o “observa” todo o tempo). Daí que o extremo oposto, um caso homossexual masculino clássico, idéias de pureza e redenção podem surgir ao isolar essa fonte parental de ansiedade: para eles a figura feminina também tem um lugar em separado, edipiano, prestigiado ou desprezado. Enquanto os parceiros, para afastá-los (ou aproximá-los) o quanto possível da imagem paterna, devem ser classificados em sua orientação, reforçando a idéia de cumplicidade em oposição a um opressor. 

  Poderíamos especular sobre o aspecto feminino também, partindo da posição homossexual feminina: aqui o pai refugado como objeto permanece como modelo (positivo ou negativo) de identificação, enquanto um possível retorno à mãe como fonte de atração deve ser desviado, por meio de uma cumplicidade forte com a parceira (posicionando-se também contra um opressor). Na outra ponta, o caso heterossexual feminino extremado tenderia a idealizar um parceiro que rivalizasse com a imagem paterna, anulando e sustentando a culpa decorrente dessa primeira paixão. A presença opressora então seria a da mãe, a quem a mulher se identifica com certa amargura: ela é uma recordação constante da culpa original do amor paterno, e da falta de um falo num universo simbólico saturado por ele. 




Conclusão?

[Hasta en los peores momentos sales ganando] 4

(((There are many here among us who feel that life is but a joke)))

++++The tank -  no woman could have invented the tank…women do not need a tank____

  Os exemplos acima são generalizações limite, e seriam uma tentativa de situar alguns dos infinitos papéis sexuais surgidos na pós-modernidade. O gozo como obrigação (marca de nossa época), ao invés de revelar novas formas de empatia entre os indivíduos, serve à reprodução de estruturas arcaicas da psiquê, que resultam das separações de gênero e classe. Essa fratura se instaura no cerne da experiência amorosa, na qual, para além da igualdade legal entre os sexos, pesam uma série de hierarquias e desequilíbrios. Este desnível distorce a perspectiva que os sujeitos têm de si e dos que estão em redor, na medida em que cria um "lado mais fraco" como referente negativo, atribuindo aptidões em campos distintos da vida social, a partir da posse ou não de um significante: o falo.

  Essa discussão pode vir a assumir, nos anos que virão, dimensões políticas radicais, na medida em que novas formas de organização comunitária deverão surgir das ruínas do mundo favelizado (Hotel Abismo). A barreira da distinção de gênero é antes língüistica do que física, mas ainda assim uma barreira "à prova de morte", na medida em que é reforçada pelas relações de dominação que marcam nosso meio. Se pudermos (tivermos que) no futuro, inaugurar formas de organização comunal que não entendam distinções de hierarquia, gênero ou classe; essas formas de organização deverão ser defendidas a todo custo. 

+ In “The Death of Orpheus” de Ovídio (Metamorphoses- Book 11) 

http://classics.mit.edu/Ovid/metam.11.eleventh.html


Por que?

http://muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_record.php?f=110

++ In “Prazer visual e cinema narrativo” de Laura Mulvey
+++ In “O Seminário: A angústia (LIVRO 10)” de J. Lacan
++++ Heiner Muller: http://muller-kluge.library.cornell.edu/en/video_record.php?f=114
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 -1- Mulholland Drive -  David Lynch 
 -2- The Cocoanuts - Marx Brothers 
 -3- The Exorcist - Willliam Friedkin
 -4- Carne trémula - Pedro Almodóvar
 -5- Brokeback Mountain - Ang Lee