terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

[o sucesso] Nigger Drama [a lama]

vai dar nela?


                                                                            faça a coisa certa...


Tarantino e a nova[anti]ética dos humanos-mercadoria-zumbi


Neste último filme do Tarantino, Django Livre, nós acompanhamos as aventuras de um escravo liberto [Django] em sua jornada para resgatar a esposa: vendida a uma fazenda “linha dura” do sul dos EUA escravista. Mas apesar de a história girar em torno de motivação tão nobre, a experiência de assisti-la na tela pode ser bastante desconfortável, e divide opiniões. O diretor Spike Lee, por exemplo, declarou que não vai assistir à fita porque seria "um desrespeito com seus ancestrais": e ninguém que tenha visto alguns dos momentos mais fortes em cena poderia culpá-lo... Dizem que algo semelhante aconteceu com a produção anterior do diretor, o filme Bastardos Inglórios: parece que ele não fez muito sucesso na Europa, onde foi recebido com antipatia pelas nações retratadas [Alemanha, França, Inglaterra...].






O que talvez explique [em parte] essa rejeição seria o fato de que, em ambos os filmes, a representação da realidade seja alegórica: construída com exageros. Este recurso, bastante utilizado por séries de TV e filmes infantis para suavizar as contradições da vida real, aparece invertido nos filmes do Tarantino: neles as contradições que estavam no ar à época do Holocausto ou da Escravidão Legalizada nas Américas, não foram suavizadas, mas INTENSIFICADAS até o doentio. Dai o espectador não encontrar um lugar seguro de identificação na tela: pois todos os personagens estão envolvidos num carrossel de destruição mútua: objetos parciais lutando pra se preservar e destruir o inimigo. O que resulta desses banhos de sangue “históricos” é que boa parte das personagens nos filmes se encontra privada da dimensão ética em suas escolhas e atos.





 Ei, senhor de engenho eu sei, bem quem você é!
  [sozinho cê não guenta, sozinho cê não guenta...]


Os filmes Django Livre e Bastardos Inglórios estão claramente irmanados: principalmente pela figura do Dr.King Schultz, interpretado por Christoph Waltz. O mesmo ator que na fita anterior encarnou o desprezível e talentoso Col. Hans Landa. Em ambos os filmes os talentos linguísticos e persuasivos das personagens [além da disposição para a violência bruta] são utilizados na captura e destruição de indivíduos criminalizados pelo Estado: apenas que no primeiro filme o alemão malvado caça inocentes famílias judias; enquanto no segundo filme o alemão bonzinho extermina criminosos regulares em busca da  recompensa por suas cabeças. Como num ajuste de perspectiva, o mesmo universo narrativo se inverte em condições históricas distintas.





 Em verdade, o que o Terceiro Reich Nazista e a América Escravista tinham de mais profundamente em comum era a noção, arcaica por excelência, de que determinados seres humanos podem ser reduzidos a objeto de compra, controle e destruição. Ainda que, na modernidade, bilhões de pessoas deixadas à margem do mundo dos direitos sofram opressão semelhante à dessas figuras injustiçadas do passado; é muito diferente quando o discurso oficial reitera e sistematiza essa separação. Nestes casos o que nós temos é uma grande desesperança: uma tristeza geral e sem cura [tão conhecida nossa, tão brasileira...] Tristeza essa que pode se converter em furor suicida-assassino, na submissão espiritual ao opressor, na negação do presente por meio da fé, dos vícios, da opressão de alguém ainda mais fraco, etc... Mas é importante frisar como, tanto na Escravidão Negra quanto no Holocausto Fascista, a redução dessas pessoas á condição de objeto fazia parte de um processo de MODERNIZAÇÃO levado ao extremo: espécie de manobra imoral de expansão capitalista, conduzida por Estados criminosos.

A solução que Tarantino oferece a seus heróis por viverem em condições tão diretamente terríveis é o uso inteligente do aparelho burocrático-estatal desenhado para oprimi-los: além, é claro, da disposição para a [auto]destruição. É nesse momento que as personagens veem aberta a possibilidade de tomar uma decisão ética: no caso de Shosanna, em Bastardos Inglórios: dar cabo dos líderes nazistas em seu cinema; e para Django: o resgate de sua amada a qualquer custo...







Mas como vou saber se aquele negão é nazista se ele não tá de uniforme?

[E de onde vêm os diamantes: da lama...] 


Uma das tiradas incômodas em Bastardos Inglórios é a obsessão do personagem Lt. Aldo Raine, interpretado por Brad Pitt, de talhar, a ponta de faca, uma suástica na testa de agentes nazistas que ele não está autorizado a matar. Esse substituto obsceno às Estrelas de David, que eram costuradas nas roupas dos judeus perseguidos, levanta uma série de questões sobre o terrorismo na modernidade. Como se sabe, num conflito armado entre duas nações, não é necessário um uniforme pra se saber quem é o inimigo de facto: a suástica lanhada na testa poderia muito bem ser um tom de pele, um idioma, um formato do nariz, um sobrenome... Que o diretor tenha “devolvido” essa ansiedade moderna [de ser descoberto e destruído] de maneira tão crua e direta foi, sem dúvida, um dos motivos de o filme ter sido mal recebido na Europa: em que etnias e nações, as mais distintas, convivem em intensa proximidade.






 Quilombo
  [de kilombo, "capital, povoação, união"] 


Em Django Livre, porém, esse gesto castrador do personagem de Brad Pitt [escalpelar e talhar suásticas] revela suas origens na marca que se fazia com ferro em brasa na cara dos escravos fujões: como as que foram deixadas no rosto de Django e de sua esposa, Broomhilda [Kerry Washington], quando tentaram escapar. Mais uma vez gestos brutais se equivalem historicamente: ainda que uma Estrela de David feita de pano não seja uma agressão tão evidente quanto um ferro em brasa no rosto: a situação real dos oprimidos, em ambos os casos, [Holocausto][Escravidão] era mais que desesperadora: e vinham de forças que não podiam ser detidas...


  





           Essa ansiedade geral, que o diretor acessa, seria uma expectativa pelos grandes eventos coletivos no horizonte: e o medo do horror, da luta violenta e desleal pela sobrevivência, que sempre trás à tona o pior em nós... Assim ele aponta para um futuro [do presente] em que nós não somos exatamente escravos, mas sujeitos submetidos a um conjunto de regras rígidas de SEGREGAÇÃO; e que a cada momento podem ser destroçados [feito em pedaços] por tais regras.



                                                   cemitério dos pretos novos - rio de janeiro





 Neg_o D_ama [r]
  [aí dona [A], sem palavras, a senhora é uma rainha [rainha]...

Django Livre e Bastardos Inglórios retratam momentos de violência pura do Estado contra os indivíduos. Em ambientes assim as esferas do público e do privado se misturam de forma obscena: tornam-se questão de vida ou morte ["se ele for um traidor posso me apropriar dos bens dele", ou, "pra ele não me descobrir, preciso destruí-lo", etc.]. A mesma lógica acontece quando nos encontramos num centro comercial rodeados de estranhos: nesse espaço público-privado nossos direitos de dignidade estão baseados em nossa capacidade de consumir, em nossa existência financeira. Do contrário você pode ser enxotado e agredido: porque sem dinheiro o sujeito se torna uma espécie de não pessoa nesses ambientes. Daí a sensação que nos dá, dentro da estética dos filmes, de que os personagens caminham por um shopping center ou uma casa noturna badalada: ainda que estejam no meio de uma fazenda de cativos ou num território ocupado. O sangue frio que as personagens precisam para superar um ambiente que lhes é hostil se baseia na preservação do seu “segredo”: Shosanna esconde sua origem judaica; e Django se faz passar por um traficante de escravos...



                                                                                                              luiz gama



Na base dessa atitude “combativa” estão certos eventos de rebelião espontânea contra a opressão: o triste é que esses eventos de rebeldia estão reduzidos, no mais das vezes, a questões de consumo. Encontramos exemplos cruéis que vão do morador de rua que despista seguranças para usar o banheiro masculino; até verdadeiros movimentos de massa: como aqueles saques que varreram a Inglaterra anos atrás, na forma de um levante popular de consumidores frustrados... Tamanha idiotização da vida revela a miséria espiritual que pauta nossas expectativas na atualidade: esse vazio político cria um vácuo que resulta nas formas mais refinadas de egoísmo...


           Mas é preciso reiterar a grande distância [cada dia mais curta?] que existe entre um sujeito sem vida financeira, e um sujeito que é propriedade de outro ser humano: como acontecia nos regimes fascistas do século XX ou nas plantations americanas do século XIX. Intuitivamente, todos nós tememos a ameaça de um futuro de escravidão oficializada: o que seria uma regressão sem precedentes, e uma segunda noite dos tempos...  Mas ao mesmo tempo existe um entusiasmo saudável que vem desse medo: um riso por detrás da ideia de escravidão que a torna absurda pra nós, e nos excita a agir. Talvez seja o receio de que as pessoas não sigam esses instintos de rebelião que torne as histórias de Tarantino tão violentas. A mesma lógica funcionaria para o filme Kill Bill, por exemplo, em que a heroína-guerreiro revela a violência masculina como pura performance: e nesse sentido a fita é feminista. Ainda que em Django Livre e Bastardos Inglórios esse “feminismo” do diretor ande meio deixado de lado: pautado em valores espirituais de heroínas sofridas, rodeadas de heróis e vilões igualmente mau-caráter.








Zumbi
[de nzumbe, "fantasma, espectro, alma de pessoa falecida"]


            Gostaríamos de terminar comentando uma cena do filme Django Livre que nos incomodou mais profundamente: aquela em que o personagem de Leonardo DiCaprio, o fazendeiro Calvin Candie, apresenta aos convidados de sua casa o crânio do antigo escravo de seu pai: ele então se pergunta porque o homem, que fazia a barba do seu senhor todas as manhãs, não o havia degolado com a navalha pra se libertar. Este é o momento em que o filme atinge seu clímax dramático: o desconforto é geral e grandes coisas são esperadas do diálogo a seguir. Mas o que acontece então? Nada. A força do momento fica recalcada no silêncio e se perde: é uma condenação de morte pra todos em cena, inclusive o filme, em certo sentido... Mas então porque eles não debateram? E por que isso faz diferença?





              O papel de senhor de homens e terras, de protetor dos costumes e da lei, de alguém que não pode ser contrariado, é outra forma de miséria periférica: e também desumaniza seu hospedeiro. Assim que, exatamente por haver tanta violência em redor contra os “objetos” pessoas, que os homens livres devem agir entre si com um reconhecimento mútuo de valores humanos e de confiança. A existência civilizada à europeia que Calvin Candie idealiza passa longe da sua rotina de matar, estuprar e mutilar pessoas de cor. E é por isso que nesse momento, quando ele coloca a questão do porque o negro não degolou seu senhor quando teve a chance, que o filme poderia ter iniciado um diálogo forte. Tão forte quanto as cenas de violência e tortura psicológica apresentadas até então. O debate daria um pouco de cor política ao sangue em cena, e talvez prevenisse as pessoas mais jovens contra os argumentos “irrefutáveis” dos conservadores: que na ânsia para que nada mude nunca têm a pachorra de perguntar ao crânio de um escravo: mas porque você não se rebelou?



                                                                                      mapplethorpe




Banzo
[de ku banza, "pensar, raciocinar"]


O interessante é que a mesma pergunta já foi feita a um prisioneiro polonês, que era responsável por barbear um oficial nazista todas as manhãs, durante a invasão alemã de seu país. A resposta que o velho barbeiro deu serviria muito bem para dono daquele crânio, já que ele disse o óbvio: que se degolasse o tal oficial seu destino certo seria a tortura até a morte e que, além disso, sua família e companheiros também sofreriam as consequências de seu ato... Por fim ele concluiu que não haveria nenhum resultado prático na sua rebelião, pois eles substituiriam aquele oficial por outro ainda mais cruel. Mas então porque no filme a discussão não se aprofunda, já que todo mundo estava tão ansioso para por à prova os próprios preconceitos? [sentindo a proximidade da Guerra Civil?] Porque não sair do armário de uma vez e dizer que aqueles caipiras escravistas viviam como psicopatas? Que aquela vida com escravos não era desejada nem por eles próprios, e só reproduzia miséria, tortura, sofrimento? É uma pena que ninguém tenha dito nada: mas esse não dizer funcionou como uma afirmação.



                                                                leni riefenstahl


 A partir daí os caminhos do filme mudam radicalmente: isso porque os personagens chegam a um acordo sobre compra de Broomhilda sem mencionar a questão da escravidão. O recalque dessa discussão faz os eventos girarem em falso: pois se antes era tudo uma questão de ludibriar o opressor em busca de justiça e liberdade; com a compra silenciosa da moça se revelou outro arranjo, em que Django e seu amigo Dr.Schultz deixam de fingir e se tornam, efetivamente, traficantes de escravos.


 É por isso que, pra que as explosões de violência continuem apesar de "ninguém acreditar mais em nada", Django precisa ser salvo do apuro por meio de recursos das narrativas infantis: umas “viradas de jogo” em que o personagem consegue a liberdade por sorte e "malandragem": apenas para poder explodir tudo de uma vez e pegar seu prêmio. O herói então se vê rodeado por uma multidão de jagunços-zumbi: numa espécie de briga de família que ninguém sabe bem porque começou. Mas ao final destrói todo mundo e encontra sua esposa milagrosamente intacta: aqui o filme se encontra no terreno do fantástico, da literatura de cavalaria de acento conservador cristão... [Mel Gibson?]




                                                                                                     A.e L.


Looonga conclusão
[índios, padres, bichas, negros e mulheres]


            É isso: historicamente, algumas pessoas passaram de mercadoria a trabalhadores livres depois de muita luta; enquanto outras foram constrangidas á condição de escravos-mercadoria e dizimadas aos milhões... Mas nunca é demais ressaltar que essas pessoas foram escravizadas na esteira de processos de Modernização Forçada pelo avanço capitalista. O Tráfico Negreiro, por exemplo, já foi considerado “a atividade mais lucrativa sob o sol”...  Mas e aqui na atualidade?  Para o sujeito moderno, os cidadãos de “segunda classe” vão assumindo as formas mais variadas de gênero, cor e nação: e desse modo a opressão se reproduz indefinidamente... O universo desencantado que Tarantino pinta [mas não completa]: é o mundo do sujeito submetido ás forças terríveis: o yin e o yang que podem transformar seus ossos em abajur e seus cabelos em estofo de travesseiro, a saber: o Capital e o Estado. Mas então porque nós acreditamos [junto com Tarantino e Vladimir S...] que fora da tutela dessas forças só existiria opressão, interesse mesquinho e perversão? Por que, afinal, no apagar das luzes [com guerras, epidemias, catástrofes, deslocamento de populações, sede e fome sistêmicas, carestia, secas, inundações...], nós não nos reconheceríamos como iguais e organizaríamos uma vida nova e igualitária? Essa não é uma pergunta fácil, e Tarantino sempre nos responde com o pior cenário possível...




Mas falando em esperanças, o filme Netto e o domador de cavalos, de Tabajara Ruas, faz a fundo esse percurso que Tarantino tem experimentado com menos sucesso. Estão lá os mesmos elementos pervertidos pelas relações de poder: o senhor de engenho que come a filha e tortura a escravaria, os jagunços retardados, os milicos tarados, etc. Só que nessa fita nós temos também o outro lado: os quilombos, as organizações republicanas, o abolicionismo dos homens livres: isso porque a história se passa ás vésperas da Revolução Farroupilha. Ah, e tem muito sangue e violência também, porque era um tempo horrível, de grandes horrores... Vale a pena comparar.






[obrigado ao male-sister g.: vish!]

Até!

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